EXPERIÊNCIAS AGROECOLÓGICAS, HORTAS COMUNITÁRIAS, COZINHAS SOLIDÁRIAS
- paraumnovocomeco
- 27 de jun. de 2021
- 8 min de leitura
INICIATIVAS DE RESISTÊNCIA E CONSTRUÇÃO DE ALTERNATIVAS FRENTE À CRISE ESTRUTURAL DO CAPITAL
Claudio Luiz Alves de Santana*
23/06/2021

Estamos diante de uma crise, denominada por Mészáros (2011) de Crise Estrutural do Capital. Isto não quer dizer, como o próprio Mészáros afirma em Para Além do Capital – Rumo a uma teoria da transição, que o capital esteja em sua derrocada final. Muito pelo contrário, trata-se de uma crise histórica alongada rastejante e contínua, em que o sistema do capital faz uma transição distinta da que nós, lutadores por uma sociedade emancipada frente à ordem do capital, gostaríamos que fosse e que os remédios aplicados para lidar com essa Crise Estrutural são cada vez mais ineficazes e amargos a todos nós.
A chamada necropolítica que ora assistimos em nosso país, a fome, o desequilíbrio ecológico, o desemprego em massa em todo o mundo, os governos autoritários e de extrema direita, tal qual vivenciamos no Brasil, a extinção da legislação trabalhista e dos serviços públicos em curso em todo o mundo, fazem parte fazem parte da lógica destrutiva do capital e tornam ainda mais complexos os nossos desafios e problemas a serem enfrentados.
Casas (2020 p. 24), corroborando com Mészáros, nos diz que a Crise Estrutural do Capital apresenta “(...) múltiplas facetas: crise financeira, crise de superprodução e superacumulação mundial, crise alimentar, crise energética, crise geopolítico-militar, crise tecnológica, crise ambiental e urbana, crise de hegemonia no sistema-mundo capitalista, crise civilizatória…”, agrupando-as em “três grandes grupos e vertentes: a crise econômica sistêmica, a crise ecológico-ambiental e a crise civilizatória”. Prosseguindo em sua análise, afirma que: “Na realidade mais do que três faces de um mesmo objeto são três crises que, na sua expansão planetária, convergem e se entrelaçam: cada uma tem suas características e seus ritmos próprios, mas que ao mesmo tempo se potencializam e modificam mutuamente.” (Idem)
Isso não quer dizer que tudo esteja perdido. Há inúmeras tentativas de resistência e busca de caminhos alternativos de enfrentamento. A agricultura urbana e periurbana (área geográfica situada além dos subúrbios, o rural e o urbano se confundem), baseadas em experiências agroecológicas, as hortas urbanas comunitárias, cozinhas solidárias, cooperativas de consumo, dentre outras iniciativas, são iniciativas incipientes e algumas delas existentes há algum tempo, que buscam resistir de modo independente a esta crise, e que podem se transformar numa importante força política, sem abrirmos mão, é claro, da luta política de defesa dos nossos direitos e dos serviços públicos e, pelo controle das forças produtivas e do desenvolvimento tecnológico, tal qual o Movimento Ecossocialista reivindica. É o que veremos a seguir, num exame inicial que fizemos, sobretudo, a partir de levantamento realizados por autores e movimentos ligados a essas experiências.
UM BREVE LEVANTAMENTO SOBRE AS EXPERIÊNCIAS EM CURSO DE AGRICULTURA URBANA E PERIURBANA, HORTAS URBANAS COMUNITÁRIAS E COZINHAS SOLIDÁRIAS
Em inúmeros lugares do mundo e do Brasil encontramos iniciativas de agricultura urbana e periurbana. De Nova Iorque às metrópoles europeias, nos países periféricos da África, Ásia e América Latina, e, nas principais metrópoles brasileiras, há estudos que mostram a ocorrência desses experimentos que já respondem por cerca de 20% do alimento consumido no mundo e que em algumas regiões, pode ser maior esse percentual.
Segundo o relatório da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), ‘Cultivando cidades mais verdes na América Latina e no Caribe‘, de 2014, citado pelo levantamento da EPSJV/Fiocruz, as experiências exitosas na região: “(...) incluiu cidades como Havana, Cidade do México, Tegucigalpa, Manágua, Quito, Lima, El Alto e Rosário. Do Brasil, a cidade de Belo Horizonte foi a que mais se destacou. De acordo com a publicação ‘Cidades mais verdes’, também da FAO, 130 milhões de habitantes urbanos na África e 230 milhões na América Latina praticam a agricultura, sobretudo horticultura, para fornecer alimentos a suas famílias ou obter renda com a venda dos produtos.” (EPSJV/Fiocruz)
Entre os exemplos brasileiros, cabe destaque para: a Rede Carioca de Agricultura Urbana (CAU) e a ASPTA – Agricultura Familiar e Agroecologia, no Rio de Janeiro; Rede de Tecnologias Alternativas em Belo Horizonte; o Centro Sabiá, em Pernambuco; a Rede de Mulheres Negras, no Rio Grande do Sul; a Associação de Apoio às Comunidades do Campo (AACC), do Rio Grande do Norte; Quintais Amazônicos, de Belém (PA), e, é evidente, muitas outras iniciativas, sendo, que, algumas delas iremos citar a seguir. Trata-se de um fenômeno agroecológico, de instalação de hortas comunitárias, pautado em reivindicações que defendem a soberania alimentar; lutam pelo acesso a uma alimentação digna; reivindicam a expansão e a preservação de áreas verdes e, de ocupação de espaços ociosos e terrenos destinados à especulação imobiliária.
Apesar da difusão das pautas, cada uma dessas experiências procuram dar uma resposta a desdobramentos da Crise Estrutural do Capital e que podem se transformar em uma força social e política de cunho popular importante.
Destacaremos, a partir um breve levantamento, algumas dessas experiências, que nos darão um panorama bem interessante dessas iniciativas na Região Metropolitana de São Paulo. Começaremos diagnosticando a produção de alimentos sob a égide do capital. Nesse ponto, Lima (2020, p. 2) nos diz que: “Atualmente a maior quantidade de terra cultivada no mundo é ocupada por um número limitado de monocultivos (soja, milho, cana-de-açúcar, canola, arroz, entre outros) que são maioritariamente comercializados como commodities nos mercados internacionais: em torno de 80% dos 1,5 bilhões de hectares dedicados à agricultura em todo o mundo. Esses cultivos, devido à sua baixa diversidade ecológica e homogeneidade genética, são muito vulneráveis às infestações de plantas daninhas, invasões de insetos, epidemias e, recentemente, às mudanças climáticas.”
Dito isto, Lima (2020, p. 2) indica a importância da Agricultura Urbana e Periurbana (AUP), afirmando que: “Por isso, a Agricultura Urbana e Periurbana (AUP) vem sendo apontada como uma via possível tanto para evitar possíveis momentos de desabastecimento das cidades causados por alterações emergenciais (como conflitos e epidemias ou mudanças drásticas), como para ampliar os espaços verdes, ambientes e relações saudáveis, além do acesso rápido e barato a alimentos de qualidade.” (ibid)
Na Grande São Paulo, de acordo com Justo (2020, p. 219): “A agroecologia na cidade de São Paulo e entorno é um movimento político cujos sujeitos buscam alimentos saudáveis e lutam pelo direito humano à alimentação adequada e saudável, que vai além da produção orgânica. Dentre os sujeitos, há militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST, ativistas da permacultura, coletivos de hortas urbanas, coletivos de jovens das periferias, sitiantes e indígenas Guarani, associações de produtores orgânicos das zonas leste e norte, grupos de estudantes e pesquisadores universitários.”
Esse movimento político agroecológico, de um modo geral, na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), segundo Justo (2020, p. 224), se distinguem em: movimentos socioterritoriais e socioespaciais.
Os “movimentos socioterritoriais” estão relacionados à luta pela “conquista de terras”. “Eles estão nas três Comunas da Terra Irmã Alberta, Dom Pedro Casaldáliga e Dom Tomás Balduíno (respectivamente no distrito de Perus/SP, em Cajamar e em Franco da Rocha), organizadas pelo MST, na Cooperapas (Cooperativa Agroecológica dos Produtores Rurais e de Água Limpa da Região Sul) e nas aldeias indígenas Guarani, na zona sul de São Paulo(...)”(ibid)
Já os “movimentos socioespaciais”, são movimentos em que alguns deles, não lutam pela “conquista de terras”, mas que são importantes. Nesses movimentos, é onde: “Temos as hortas urbanas (...) que estão espalhadas pela cidade de São Paulo, com estimativa de dezenas por iniciativas da sociedade civil (grupos de moradores, coletivos e organizações não governamentais - ONGs) realizadas em espaços públicos, como praças, escolas e unidades básicas de saúde(...)”(Justo 2020, p. 224-225)
A partir do estudo feito por Lima (2020, p. 4), na capital paulistana, é muito grande e importante o protagonismo das mulheres nas iniciativas levantadas. Dentre as inúmeras iniciativas, destacam-se: “Associação de Agricultura Orgânica em São Paulo e sua Plataforma; MUDA (Movimento Urbano pela Agroecologia de São Paulo); Agricultores da Zona Leste; a União de Hortas Comunitárias de São Paulo; Rede de Agricultoras Paulistanas Periféricas Agroecológicas (RAPPA); Grupo de Agricultoras Urbanas (GAU), projetos “Cultivar” e “Mulheres de Parelheiros Agentes de Transformação Socioambiental”, Associação de Produtores Orgânicos de São Mateus, que atualmente se chama Associação de Agricultores da Zona Leste 86 (AAZL).” (grifo nosso)
As experiências de hortas urbanas comunitárias, cooperativas de consumo, e agriculturas urbanas e periurbanas, se espalham também para a região do ABCDMRR. Citamos aqui, por exemplo, a Cooperativa de Consumo do MST em Santo André, iniciativa que faz um elo importante com a Comuna da Terra Irmã Alberta e com a Aldeia tekoa Kalipety, ocupada pelos Guarani da TI Tenondé Porã. Aliás, a Aldeia “tekoa Kalipety é atualmente referência em práticas agroecológicas a partir da combinação de saberes tradicionais guarani com técnicas alternativas do mundo não indígena.” (extraído do site https://tenondepora.org.br/aldeias/tekoa-kalipety/)
Localizamos também a experiência do Coletivo Raiz Verde em conjunto com o Coletivo Consumo Rural Urbano (CRU), que promove o consumo de alimentos orgânicos e agroecológicos, sem veneno, do Assentamento Ipanema Peró. Nas ocupações do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), encontramos também essas iniciativas que agora se relacionam com a implantação das Cozinhas Solidárias, que estão em plena expansão. “A ação pretende, até o final de abril, inaugurar 16 cozinhas comunitárias em 10 estados brasileiros (AL, CE, GO, MG, PE, RJ, RO, RS, SE, SP), além do Distrito Federal. O objetivo é servir, ao menos, uma refeição diária gratuitamente para a comunidade de cada local, nas periferias urbanas, incluindo dias de semana e finais de semana.” (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, 2021) Segundo o MTST, “Além da distribuição de refeições completas e balanceadas, o projeto dialoga e abraça, diretamente, uma importante iniciativa: o cultivo de hortas urbanas comunitárias nas periferias, que fornecerão alimentos para as cozinhas solidárias e, sempre que possível, para doação às comunidades próximas.” (ibid)
Considerações finais
Conforme antecipamos anteriormente, essas experiências possuem um grande potencial social e político e uma vez conseguindo convergir e se coordenar, serão um passo muito importante para a construção de uma alternativa societária viável, capaz de nos permitir, futuramente avanço na soberania alimentar em uma lógica sociometabólica alternativa à ordem do capital.
Voltamos a citar Mészáros, pois: “Assim, dadas as opressivas premissas estruturais do sistema do capital, o projeto socialista marxista não poderia confinar-se a uma demonstração teórica da necessidade da busca de um rumo racionalmente sustentável na reprodução sociometabólica.” (2011, p. 218) E, prossegue o nosso autor nos dizendo que: “Marx sabia muito bem que isto não poderia acontecer, porque todas as verdadeiras realizações traziam consigo as sementes de sua necessária superação futura. E também sabia que o sucesso permanente do projeto socialista só poderia ser visado se as aspirações nele expressas correspondessem às necessidades reais das pessoas.”(ibid)
Também devemos reconhecer os riscos de captura dessas iniciativas por parte do mercado e da institucionalidade reinante. Isso poderá limitar politicamente o seu potencial e as sua independência. Por conta disso, é muito importante o conceito de agroecologia abordado por Campos e Fagnoni (2019, p. 5) e definido pela Via Campesina, em que a: “forma de agricultura altamente política e que promove a soberania alimentar, ou seja, que visa desenvolver sistemas agrícolas que desafiem as estruturas de poder, procurando colocar o controle de sementes, biodiversidade, terra e territórios, água, conhecimento, cultura e bens comuns nas mãos das pessoas que alimentam o mundo” (apud DYCK, et al, p. 6).
Assim como Mészáros, entendemos que o projeto socialista deve estar vinculado, desde o seu princípio, a iniciativas que diante dos problemas reais e mais sentidos pela população, apresentem alternativas práticas que já apontem para além da lógica do capital, assim como também é importante a luta e a disputa pelo controle coletivo e reconversão das forças produtivas e do conhecimento científico, pontos decisivos para a superação da lógica destrutiva do capital. O Movimento Ecossocialista tem uma importante contribuição nesse sentido.
Por fim, é fundamental também valorizar a importância dos movimentos e experiências anticapitalistas e anarquistas no processo de transição e não apenas como aliados políticos de ocasião, a serviço de algum partido líder. Assim, como também é importante reconhecer que o socialismo, enquanto projeto socioeconômico e político é ele próprio uma transição para a realização plena d@s individuos-sociais e não uma finalidade em si mesmo.
*Claudio Luiz Alves de Santana é geógrafo, professor das redes municipal e estadual de educação pública de São Paulo; integrante do Para Um Novo Começo – Centro Político Marxista.
Referências bibliográficas:
Agricultura urbana: as potências e o risco. EPSJV/Fiocruz. Disponível em: <https://outraspalavras.net/.../agricultura-urbana-as...>. Acesso em: 12/06/2021. As cozinhas solidárias do MTST: refeições gratuitas e afeto nas periferias do Brasil. Disponível em: <https://mtst.org/.../as-cozinhas-solidarias-do-mtst...>. Acessado em: 10/06/2021. CAMPOS, Fábio De Santis; TRAVASSOS, Luciana Rodrigues Fagnoni Costa. Agricultura Urbana: entre a sociedade e a natureza. 2019. Disponível em: <http://anpur.org.br/xviiienanpur/anaisadmin/capapdf.php...>. Acesso em 11/06/2021. CASAS, Aldo. Desafios da transição: socialismo a partir de baixo e poder popular. São Paulo. Usina Editorial, 2020. https://tenondepora.org.br/aldeias/tekoa-kalipety. Acesso em: 12/06/2021. JUSTO, Marcelo Gomes. Agroecologia e agricultura urbana na cidade de São Paulo: movimentos socioespaciais e socioterritoriais. Rev. NERA. Presidente Prudente v. 23, n. 55, pp. 218-242 Set.-Dez./2020 ISSN: 1806-6755 LIMA, Márcia Tait. Por que agricultura na cidade? A importância da Agricultura Urbana em contexto de emergência climática e sanitária. Boletim Covid-19 - DPCT/IG/Unicamp n.º20 – 22/08/2020 MÉSZÁROS, István. Para além do capital : rumo a uma teoria da transição. Tradução Paulo Cezar Castanheira e Sérgio Lessa. 1.ed. revista. São Paulo: Boitempo, 2011.
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