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Em Defesa da Planificação Socialista

  • paraumnovocomeco
  • 28 de out. de 2022
  • 54 min de leitura

Atualizado: 15 de nov. de 2022

Ernest Mandel*


Quatrième Internationale n°25, septembre 1987

28/10/2022



Renato Guttuso - La Vucciria, 1974


[O presente texto foi escrito e publicado em 1987 antes, portanto, da reunificação da Alemanha e da implosão da URSS e dos países do “socialismo real” na Europa do Leste. Faz parte dos escritos de Mandel no contexto da Perestroika, política econômica implementada pela burocracia soviética capitaneada por Mikhail Gorbachev, que tentava reformar o sistema soviético através da introdução de mecanismos de mercado.]


O livro de Alec Nove "A Economia do Socialismo Possível" critica o método da teoria econômica marxista. Este método seria inútil para a construção do socialismo. O objetivo da concepção política marxista - socialismo sem a produção de mercadorias - seria uma ilusão impossível alcançar. Qualquer resposta real a essas objeções deve seguir a abordagem adotada por Marx em seu estudo sobre a formação do capitalismo.


Não adianta partir de um ideal final ou de um objetivo normativo a ser alcançado: é necessário tomar como ponto de partida os elementos da nova sociedade que já se desenvolvem na antiga, as leis e as contradições internas do modo de produção capitalista e da sociedade burguesa tal como existem.

Qual tem sido a tendência histórica fundamental do desenvolvimento capitalista a partir da revolução industrial? Um crescimento na socialização objetiva do trabalho. Todas as leis, intimamente ligadas umas às outras, do modo de produção capitalista - a busca constante por intensidade e produtividade aumentada do trabalho, a busca incansável por novos mercados, a tendência a introduzir inovações tecnológicas para economizar força de trabalho (aumento da composição orgânica do capital), concentração e centralização do capital, a queda tendencial da taxa de lucro, a explosão de crises periódicas de superprodução e superacumulação, a tendência implacável à internacionalização do capital - tudo isso leva a tal resultado.



1. A socialização objetiva do trabalho


O que é a socialização objetiva do trabalho? Trata-se, em primeiro lugar, de uma crescente interdependência entre os próprios processos de trabalho e a escolha da produção dos bens que consumimos. Esta interdependência afetava no século XIV algumas centenas de pessoas na população média de um país da Europa ou da Ásia. Ela abrange hoje milhões de pessoas. A socialização objetiva do trabalho envolve algo ainda mais importante. Ela significa uma expansão espetacular da organização planificada do trabalho. Quando a industrialização avança, não é o mercado mas o plano que predomina dentro da empresa. Quanto maior a empresa, maior a escala e o volume de tal plano.

Com o surgimento do capitalismo monopolista o plano se estende desde a empresa para a firma, ou seja, em casos típicos, para uma instituição que inclui várias empresas. Na época do desenvolvimento das sociedades multinacionais o plano torna-se internacional e muitas vezes diz respeito à múltiplas firmas no nível jurídico.

A consequência deste processo de longo prazo na era do capitalismo tardio é uma redução drástica do trabalho alocado no mercado em relação ao trabalho alocado diretamente. A principal razão para o declínio na alocação de trabalho no mercado não é uma intervenção crescente do Estado na economia ou o surgimento do Welfare State ou as conquistas das lutas de classe operária. embora tudo isso tenha contribuído para esse resultado final. Ela reside na lógica interna do próprio capitalismo e na sua própria dinâmica de acumulação e competição.

A alocação direta de mão de obra pode, é claro, andar de mãos dadas com a contabilidade monetária, como é o caso na União Soviética, China ou Europa Oriental. Isso não a identifica, no entanto, com uma alocação pelo mercado.


O plano


Utilizamos o termo "plano". Mas o próprio conceito precisa ser esclarecido. O plano não implica uma alocação "perfeita" de recursos nem um alocação "científica" ou "mais humana". Simplesmente envolve um alocação "direta", ex ante, que se opõe neste sentido à alocação pelo mercado, que ocorre ex post. Estas são duas formas de alocação de recursos fundamentalmente diferentes, mesmo que às vezes se combinem em formas precárias e híbridas que não se reproduzem automaticamente.

Elas têm uma lógica interna essencialmente diferente e determinam diferentes leis de desenvolvimento. Elas geram motivações diferentes entre os produtores e os organizadores da produção e elas se expressam por valores sociais divergentes.

Ambas as formas de alocação do trabalho existiram na história em uma escala mais ampla e durável e são portanto, tanto uma quanto a outra, perfeitamente realizáveis. Elas têm sido aplicadas sob as mais variadas formas e com os mais diversos resultados. Podemos ter um plano "despótico" e um "democrático " (aqueles que negam isso nunca estudaram uma aldeia Bantu pré-colonial). Pode-se ter um plano "racional" e um plano "irracional". Pode-se ter um plano baseado na rotina, nos costumes, tradição, magia, religião, superstição (planos ditados por fazedores de chuva, faquires e analfabetos de todos os tipos). Podemos ter - o que é pior - um plano dirigido por generais: cada exército é de fato baseado em uma alocação a priori de recursos.

Pode-se ainda ver um plano organizado de uma forma semi-racional por tecnocratas ou, no mais alto nível de inteligência científica, por trabalhadores e especialistas desinteressados. Mas, quaisquer que sejam as formas, todos esses planos envolvem uma alocação de recursos (incluindo a força de trabalho) a priori, por meio da escolha deliberada de um corpo social. No polo oposto, há a alocação de recursos pelas leis de mercado que contrabalançam ou corrigem a posteriori as decisões fragmentárias tomadas anteriormente por entidades privadas, agindo independentemente umas das outras outro.

A economia de mercado se manifesta historicamente sob as formas mais variadas no sentido de uma distribuição ex post de recursos. Em princípio, podemos ter economias de mercado com livre concorrência "perfeita" mesmo que, na prática, isso dificilmente se realize. Podemos ter economias de mercado marcadas pelo predomínio de monopólios poderosos, capazes de controlar grandes setores de atividade e, portanto, de fixar os preços por longos períodos. Os mercados podem coexistir com formas duras de autocracia e despotismo como, por exemplo, o absolutismo do século XVIII e o czarismo do século XIX, para não falar dos regimes militares ou ditaduras fascistas do século 20. Eles podem também coexistir com formas avançadas de democracia parlamentar, como este é o caso na segunda metade deste século, mesmo que seja apenas em uns vinte países entre os cento e cinquenta do mundo capitalista.

A economia de mercado pode agravar a miséria das grandes massas por declínio em seu padrão de vida; isso aconteceu na maioria dos países ocidentais durante grande parte dos séculos XVIII e XIX e em seguida na Europa Oriental. No século XX este é agora o destino do hemisfério sul. O mercado também pode, sob certas condições, permitir aumentos significativos do padrão de vida médio da maioria dos população, como foi o caso nos países ocidentais durante os trinta anos que antecederam a Primeira Guerra Mundial e no quarto de século que se seguiu à Segunda.

Mas, em todos esses casos, é sempre o princípio do mercado que domina, ou seja, uma alocação de recursos a posteriori de acordo com as flutuações das vendas e das rendas (sob o capitalismo, do lucro). Historicamente, a economia de mercado atingiu seu nível mais extenso durante a transição da pequena produção mercantil para os estágios iniciais de um capitalismo baseado em empresas relativamente pequenas, no mundo do laissez-faire de meados do século XIX. Posteriormente, os princípios puros da alocação pelo mercado se depararam cada vez mais com as exigências de produção racional nas grandes empresas e firmas.

Os dois sistemas diferentes de alocação de recursos são amplamente idênticos e estruturalmente ligados a duas formas diferentes de adaptação da produção às necessidades. Cada sociedade humana é orientada, em última análise, para o consumo porque sem o consumo dos produtores (ou seja, a reprodução de sua força de trabalho) não haveria produção nem a sobrevivência humana. Essas necessidades podem dadas desde o início, estabelecidas por exemplo por um organismo social dominante e a produção é organizada para satisfazê-las. Ou então elas devem ser consideradas como desconhecidas, ou de qualquer maneira incertas, e presume-se que é o mercado que as revela por meio dos gastos da "demanda solvente".

Após a Segunda Guerra Mundial, na época da economia voltada para regular os ciclos e do Estado de Bem Estar, esta própria demanda foi considerada pela ciência burguesa convencional como dependente em certa medida das decisões e da intervenção das autoridades públicas. Mas, durante a última década, houve uma dura reação no mundo capitalista contra ideias e técnicas keynesianas com uma reabilitação sem limite do mercado e produção de mercadorias como valores da civilização. Essa mudança teve influência igualmente na esquerda.

Hoje, todo o pensamento socialista (que é mais antigo que Marx mas ao qual este último deu uma expressão científica sistemática) que representa uma crítica da produção de mercadorias e do mercado como tal e uma desmistificação histórica de uma série de concepções que remontam a Hobbes, Locke e Smith corre o risco de ser rejeitado de uma forma indiscriminada. Não apenas professores e políticos conservadores, mas também muitos social-democratas de esquerda e euro-comunistas, redescobrem e reintroduzem em seu pensamento axiomas burgueses que não têm nenhuma base empírica ou científica. A conclusão lógica de tal mudança de opinião é uma perda de confiança na possibilidade de planejamento consciente e uma aceitação, se não adoração, do mercado que golpeia no coração a causa do socialismo.

A verdadeira questão nos debates atuais não é até que ponto a troca de mercadorias é necessária imediatamente após uma revolução anti-capitalista, mas se o objetivo de longo prazo do socialismo, ou seja, uma sociedade sem classes cuja construção pode levar um século, merece ser alcançado e porque o merece. Esta é a questão fundamental para todos teóricos socialistas de Babeuf e Saint-Simon a Engels e Rosa Luxemburgo.

Para nós também. Toda tentativa de responder a Alec Nove e outros advogados do "socialismo de mercado" esbarra em uma dificuldade. Essas pessoas querem analisar e corrigir as graves distorções das economias transição na União Soviética, Europa Oriental e China. É uma preocupação legítima e necessária. Não pensamos que essas sociedades sejam, sob seja qual forma for, sociedades socialistas. Nós não pensamos tampouco que o socialismo, como Marx o definiu, esteja logo à frente. Em nenhum desses países uma abolição radical das relações de mercado que subsistem é desejável nem viável. O significado do livro de Nove é explicar que o "socialismo marxista", em sua definição clássica, não está na agenda em lugar nenhum e que desde o início foi apenas um projeto utópico.

Em outras palavras, o argumento de Nove não se refere apenas ao período de transição com seus problemas econômicos específicos, mas à própria natureza do socialismo. A experiência da União Soviética com toda sua carga histórica de atraso, de destruição causada pela guerra e de desordem burocrática, é usada para dar peso a argumentos clássicos contra o planejamento socialista enquanto tal.

Coloquemos a questão: os problemas particulares de economias como URSS não dependem parcialmente da imaturidade das condições de socialização generalizada? No entanto, existem nos países avançados tendências objetivas que revelam a existência de recursos materiais, técnicos e humanos necessários para o planejamento. Podemos também constatar qual é o preço pago nessas sociedades pela ausência de um planejamento.

Sem dúvida, qualquer programa realista voltado para o combate ao desemprego em massa, à superexploração dos trabalhadores e minorias étnicas ou às consequências da irresponsabilidade ecológica de grandes corporações e dos governos terá que se basear em prioridades sociais completamente novas, fixadas por socialização genuína e um planejamento democrático. O próprio Marx não rejeita a produção de mercadorias sob o socialismo por simples razões de eficiência econômica ou por confiança cega no proletariado. Seria absolutamente errado desistir da enorme contribuição da tradição socialista que culmina em seus escritos, apenas porque esta contribuição é fraudulentamente reivindicada pelos partidários soviéticos da centralização burocrática. Nós não rejeitamos os princípios dos direitos humanos devido ao fato de que esses princípios são invocados também por capitalistas reacionários.


Muitas decisões?


Vejamos agora quais são algumas das principais objeções que Nove apresenta contra a concepção marxista clássica de planejamento socialista. Com base em seu indiscutível conhecimento da economia soviética, ele explica que, em um dado momento, doze milhões de bens diferentes estão sendo produzidos na União Soviética e que somente o mercado pode cumprir a função de distribuí-los racionalmente. O número de decisões a serem tomadas é simplesmente grande demais para qualquer associação democrática de produtores possa fazê-lo.

É necessário inicialmente precisar que as cifras de Nove incluem um número enorme de bens intermediários e de peças isoladas bem como de tipos de equipamentos especializados que os cidadãos comuns não veem nem consomem jamais. Elas incluem igualmente uma grande quantidade de variantes do mesmo bem de consumo. Isto corresponderia nas sociedades ocidentais a dez tipos diferentes de detergentes ou a trinta tipos de pães. As pessoas normais habitualmente não consomem mais do que um ou dois destes tipos de bens. É preciso levar isto em conta para delimitar a dificuldade da qual Nove fala. Na realidade o mercado não “distribui” milhões de mercadorias nos países capitalistas avançados.

Na melhor das hipóteses, os consumidores privados compram apenas alguns milhares de bens diferentes ao longo de suas vidas (para muitos deles até isso é uma estimativa exagerada). Quase não têm tempo para consumir "milhões" de mercadorias nem responder a milhões de "sinais do mercado" ao "escolhê-las". A ideia - cara tanto para os economistas liberais quanto para Stalin! - segundo o qual as "necessidades de consumo" são ilimitadas e que sua satisfação requer um "número ilimitado" de bens é simplesmente ridículo. Não é possível consumir um número ilimitado de bens em um espaço de tempo limitado e infelizmente a nossa estadia na Terra é bem limitada!

A situação não muda substancialmente no que diz respeito aos bens de produção, incluindo os bens intermediários. Como já assinalamos, a maioria dos bens intermediários não são distribuídos através do mercado. Eles são produzidos sob encomenda. Isso é óbvio. Isto também se aplica, embora seja apontado com menos frequência, para a maioria das grandes máquinas. Turbinas hidrelétricas para barragens não são compradas no mercado: elas são encomendadas com especificações bem precisas. Mesmo que isso seja feito com base em licitações públicas não é igual à distribuição no mercado. As diferentes ofertas não resultam em produtos diferentes efetivamente fabricados entre os quais se pode escolher.

Eles resultam no desenvolvimento de um único produto que é automaticamente usado. O mesmo procedimento pode ser adotado sem a introdução de qualquer mecanismo formal de mercado. Em vez de examinar ofertas concorrentes seria possível calcular os diferentes custos de produção em unidades de produção diferentes e optar pela oferta mais barata, desde que todos os requisitos técnicos e de qualidade sejam atendidos.

Chegamos assim a uma conclusão bastante surpreendente. Já na atualidade, nos países capitalistas mais avançados, a maioria dos bens de consumo e bens de produção não são de forma alguma produzidos com base em "sinais do mercado" mudando abruptamente de um ano para outro, nem mesmo de mês a mês. A maior parte da produção corrente corresponde a modelos de consumo e técnicas de produção dadas que são em grande medida, senão totalmente, independentes do mercado. Como isto acontece? É precisamente o resultado da socialização objetiva crescente do trabalho.

Porque o problema da distribuição de recursos em relação a produtos que são conhecidos, em larga medida com bastante antecedência, não poderia ser resolvido pelos produtores associados com a ajuda de computadores modernos que podem calcular "milhões" de equações? Certamente os hábitos de os consumidores não são imutáveis. Mudanças tecnológicas a longo prazo podem transformar radicalmente a gama predominante de bens de consumo, assim como a forma de produzi-los. Há um século atrás carruagens puxadas por cavalos eram itens de produção padronizados. Hoje elas foram substituídas por carros. Um século atrás quase não se utilizava cimento, aço , vidro ou alumínio na construção de casas.

Agora, quase não usamos mais madeira e tijolos … Mudanças dessa natureza, entretanto, só ocorrem em grande escala no longo prazo. Além do mais, o impulso para tais mudanças não vem nunca do mercado ou do consumidor. Vem do inovador e da unidade de produção associada. Nunca houve dezenas de milhares dos consumidores. exclamando: "Caro Henry Ford, dê-nos automóveis! Caros amigos da Apple Corporation, dêem-nos microcomputadores!" Marx sublinhou que a pressão para a mudança tecnológica constante é determinada tanto pela competição inter-capitalista, quanto pela luta de classes entre capital e trabalho quanto pelo lançamento de novos produtos para criar a demanda necessária e vender o maior número possível de mercadorias. Isso mais de meio século antes de Schumpeter.



2. Escassez e abundância


O problema da extrema complexidade da alocação apresentada por Nove é grandemente ilusório para uma economia industrial avançada. Ninguém nega que o planejamento socialista democrático enfrentará dificuldades práticas específicas, algumas das quais podem ser facilmente previstas e outras, por enquanto, bem menos. Mas não há nenhuma razão para acreditar que elas serão insolúveis no sentido técnico indicado por Nove. Em todo o caso, sua crítica da concepção marxista do socialismo não se limita aos métodos de construção de uma sociedade sem classes mas diz respeito à definição do próprio objetivo. Na verdade, a pré-condição de abundância sobre a qual foi baseada a ideia de comunismo de Marx é, de acordo com Nove, irremediavelmente utópica:

“Definamos abundância como aquilo que é necessário para satisfazer as necessidades a custo zero de modo que nenhuma pessoa razoável fique descontente ou deseje algo mais (ou, pelo menos, algo mais que seja reproduzível). A abundância desempenha um papel crucial na visão de que Marx tem do socialismo-comunismo. Ela remove conflitos de alocação de recursos uma vez que implica, por definição, que há o suficiente para todo mundo e, portanto, não há escolhas mutuamente exclusivas … Não há razão para diferentes indivíduos ou grupos lutarem entre si, apropriando-se para seu próprio uso do que está disponível para todos mundo. Tomemos como exemplo o abastecimento de água nas cidades escocesas. Obviamente envolve custos: é necessário usar a força de trabalho para construir reservatórios e tubulações, para purificar a água, para fazer reparos e assegurar a manutenção…

No entanto, existe uma grande quantidade de água. Não é necessário ajustar o uso por um "racionamento com base no preço"; nós podemos tê-la em quantidades suficientes para todos os fins. Ela não é "vendida no mercado " sob qualquer forma e seu fornecimento não é regulado por nenhuma "lei do valor" ou por qualquer critério de lucro. Não há competição pela água, não há conflitos a seu respeito... Se os outros bens estivessem disponíveis gratuitamente, como a água na Escócia, atitudes humanas novas se desenvolveriam; o instinto de posse desapareceria; os direitos de propriedade, bem como os crimes contra a propriedade, também desapareceriam. ”(The Economies of Feasible Socialism, pp. 15-16).


Nove e suas contradições


Nove começa dizendo que "abundância" significa ausência de conflitos para a alocação de recursos. Em seguida, reduz a "alocação de recursos" às necessidades do consumidor. Na verdade, não haveria "abundância" de água na Escócia se cinquenta usinas de energia começassem a funcionar lá. Em outras palavras, Nove parte da premissa tácita de que o que é "abundância" é determinado pelas necessidades atuais dos consumidores locais, e apenas por eles, todas as outras coisas sendo iguais. Ou, para expressá-lo de outra forma, ele assume como garantidos e permanentes os hábitos de consumo (e os modelos de produção resultantes). Ele basicamente não deixa sua premissa explícita porque, se o fizesse, seria forçado negar sua afirmação inicial de que a abundância é impossível e o socialismo de Marx inatingível.

Há uma outra contradição em sua argumentação. Por um lado, Alec Nove explica que para garantir a "abundância" de água aos habitantes da Escócia a força de trabalho deve ser empregada (para construir canalizações, reservatórios, garantir a manutenção, etc.). No entanto, a força de trabalho é "relativamente rara”. A mesma força de trabalho que é empregada para construir canos ou reservatórios poderia ser utilizada ​​para fins alternativos (construir campos de golfe, usinas de eletricidade ou mesmo mísseis).

No entanto, por razões misteriosas, apesar da inevitabilidade em geral de "conflitos” para "alocação de recursos " a água pode ser distribuída gratuitamente na Escócia. A ligação que Nove e outros economistas, sociólogos e filósofos misantropos proclamam entre a escassez global de recursos e padrões específicos de comportamento humano é, no mínimo, empiricamente não comprovada. O exemplo que ele mesmo dá demonstra que é perfeitamente possível que as pessoas não sejam determinadas pelo instinto de posse no que diz respeito a bens particulares, em circunstâncias particulares, desde que uma série de condições sejam realizadas.

Quais são essas condições? Por que o "racionamento baseado no preço" não é necessário no caso do consumo de água dos cidadãos da Escócia? É incrível que Nove não tenha mencionado isso, enquanto economistas marxistas e economistas liberais poderiam facilmente concordar neste assunto, pois explica perfeitamente porque não poderíamos dizer o mesma coisa na hipótese de uma potencial multiplicação de usinas elétricas na área. Isso ocorre porque a elasticidade marginal da demanda de água é zero ou mesmo negativa para o consumidor privado médio. Provavelmente há "desperdício" porque a água é distribuída gratuitamente.

Mas esse desperdício é menor do que custaria cobrar por este bem individual (instalação de medidores, contratação de pessoal de controle, envio de faturas, etc.). A demanda estável e previsível (tendencialmente mesmo decrescente) é o elemento empírico operacional chave. Tudo o mais é decorrência.

Se podemos conceber uma abundância de água no contexto de uma escassez persistente do conjunto de recursos, por que não podemos dizer o mesmo acerca de outros bens ou serviços semelhantes? A água escocesa é realmente o único bem para o qual a elasticidade da demanda é igual a zero ou negativa? É aqui que a concepção marxista do socialismo-comunismo assume todo o seu significado. Através do aumento da riqueza social, do crescimento das forças produtivas e do surgimento de instituições pós-capitalistas, o número de bens e serviços caracterizados por tal inelasticidade da demanda e portanto capazes de serem distribuídos gratuitamente pode aumentar progressivamente.

Quando entre 60% e 75% de todos os bens de consumo e serviços forem distribuídos desta forma, este processo cumulativo terá mudado profundamente a "condição humana" como um todo. Uma outra petição de princípio se insinuou na conclusão de Nove. Ele parece sugerir que "direitos de propriedade" decorrem inevitavelmente da "escassez". Mas para que a escassez gere tais direitos são necessárias instituições sociais específicas que tornem possível, facilitem, mantenham e defendam a apropriação privada dos meios de produção e privem a massa dos produtores da mesma forma que os privam de sua base natural (a terra, a água, o ar). Essas instituições por sua vez estão vinculadas a classes sociais específicas, que defendem seus interesses específicos contra as classes que têm outros interesses.

A "escassez" também existia em uma aldeia Bantu tradicional, mas não não determinou "direitos de propriedade" da guerra por milênios. Se os habitantes da Escócia (ou da Grã-Bretanha, da Europa ou de uma federação socialista mundial) decidissem democraticamente não dar direitos de propriedade para potenciais investidores em energia hidrelétrica, nenhuma lei econômica poderia transformar misteriosamente a água de propriedade pública em propriedade privada como resultado da escassez.

Eles podem ser forçados a pagar o preço de uma energia mais cara (ou seja, gastar mais recursos materiais e humanos para a produção de energia) para realizar a opção de ter água limpa e gratuita. Mas isto seria sua escolha e seu direito enquanto consumidores e cidadãos.

Pelo mesmo motivo, também é errado deduzir da escassez um "instinto humano de posse” genérico. Tal instinto não existe sob um forma geral. Em vez disso, existem inclinações específicas para este instinto, ligadas mais à intensidade relativa de necessidades específicas do que à escassez de bens em geral ou mesmo com a escassez de bens particulares. Um Rolls-Royce é muito atraente. Também é muito raro. Muitos motoristas (e certamente a maioria dos fanáticos por carros) gostariam de ter um Rolls-Royce. Mas a esmagadora maioria da população não se move para obtê-lo. Portanto, o "instinto de posse" pode ​desaparecer muito antes que a "escassez" em geral tenha desaparecido, assim como desapareceu entre o povo escocês no que diz respeito à água. É suficiente que as necessidades mais intensamente sentidas sejam satisfeitas ou que haja saturação do consumo nesta área. É neste pressuposto que Marx baseou sua concepção de socialismo, que é bastante realista e concebível.



3. A hierarquia de necessidades


Em resposta à crítica de Nove à herança marxista, introduzimos o conceito de "intensidade relativa das necessidades". Esta noção tem várias implicações importantes para uma discussão sobre o planejamento socialista. No Ocidente a intensidade variável das necessidades é expressa hoje através de comportamentos diferenciados em relação a bens que têm um preço (e mesmo aqueles que não o têm). Mas isto não tem que ser medido necessariamente em dinheiro. Podemos verificar empiricamente as mudanças nos modelos consumo físico quando a renda cai drasticamente (como este é o caso de muitas pessoas durante a atual depressão). Aspectos característicos muito comuns aparecem claramente. Algum os gastos são, de fato, cortados antes de outros.

Dentro de cada categoria importante de consumo variedades de bens são reduzidos enquanto outros aumentam (consumimos mais carne de porco e menos carne magra). Gastos com saúde se mostram mais rígidos do que os dos produtos de higiene.

Não se trata de preferências devidas ao acaso. Um dos mais importantes progressos no conhecimento determinado pelo capitalismo – constitui em um certo sentido um elogio ao capital - é que em consequência do aumento do padrão de vida das classes médias e, em seguida, das camadas mais amplas da população, dispomos agora de uma grande quantidade de dados empíricos sobre os padrões de consumo, que aparecem notavelmente semelhantes em muitos países. Podemos assim constatar uma ordem objetiva de prioridade comum a centenas de milhões de pessoas ao longo de muitas décadas.

Qualquer pesquisa séria sobre as necessidades humanas deveria começar a partir desses dados. De tal pesquisa aparece o que o estatístico prussiano Engel já havia constatado há cento e cinquenta anos. À medida em que, como resultado do crescimento econômico, as necessidades se diversificam, podemos observar uma hierarquia bem definida. Existem necessidades básicas. Existem necessidades secundárias. Também existem necessidades de luxo ou marginais.

Basicamente (estamos prontos para aceitar correções, mas com base em dados empíricos e não em especulação metafísica) podemos incluir na primeira categoria: alimentos e bebidas básicos, roupas, acomodação com conforto associado (água encanada, aquecimento, eletricidade, banheiro, mobiliário), despesas com educação e saúde, transporte para o trabalho e um mínimo para as distrações necessárias à reconstituição da força de trabalho ao nível determinado pelo ritmo de trabalho e estresse. Estes são necessidades que, de acordo com Marx, devem ser satisfeitas para que um assalariado médio possa continuar a trabalhar em um determinado nível de esforço.

Elas podem ser subdivididas em necessidades fisiológicas mínimas e necessidades adicionais histórico-morais. Elas variam no espaço e no tempo. Suas flutuações dependem de mudanças importantes na produtividade média do trabalho. Elas também dependem das grandes variações na relação de forças entre as classes sociais em luta a cada momento dado, em cada dado país; estes são dados objetivos que também se refletem na consciência da grande maioria da população. Elas não podem ser alteradas de forma arbitrária (inclusive por meio das "forças do mercado") sem violentas perturbações do quadro social e econômico.

Na segunda categoria de bens e serviços poderíamos incluir o a maioria dos alimentos e bebidas adicionais, roupas e utensílios domésticos sofisticados, bens e serviços mais elaborados ao nível de cultura e lazer e meios de transporte privados (distintos dos meios de transporte público). Todos os outros bens de consumo e serviços se enquadram na terceira categoria, a dos gastos de luxo. É claro que é difícil estabelecer limites precisos entre essas três categorias de necessidades.

A transição gradual de necessidades (e de bens e serviços que satisfaçam essas necessidades) da segunda para a primeira categoria depende do crescimento econômico e progresso social (especialmente dos resultados da luta de classes do proletariado). Descanso remunerado para todos é uma conquista recente da classe trabalhadora que remonta à onda de ocupação de fábricas de 1936-1937 e suas repercussões no mundo industrializado. A distinção entre a terceira e segunda categoria é uma questão tanto de preferências socioculturais quanto de fenômenos de massa que podemos observar.

Embora todos esses pontos mereçam ser sublinhados, o modelo geral que se esboça é muito claro. A hierarquia das necessidades humanas obviamente tem uma base fisiológicas e uma base sócio-histórica. Não é arbitrária nem subjetiva. Pode ser encontrada em todos os continentes, nas condições mais diversas, mesmo que sob uma forma não sincronizada devido ao desenvolvimento desigual e combinado do crescimento econômico e do progresso social. O hierarquia de necessidades não é o resultado de qualquer ditame seja das forças do mercado, de burocratas ou de especialistas esclarecidos.

Ela se exprime pelo comportamento espontâneo ou semi-espontâneo do consumidor. O único "despotismo" que existe é o da grande maioria. As minorias "excêntricas" - que na maioria das vezes não são tão pequenas em números absolutos - não fazem parte do modelo geral. Mas a lei dos grandes números tende a contrabalançar as exceções e manter no espaço e no tempo um modelo que indica uma hierarquia definida de necessidades da esmagadora maioria dos consumidores. Esta hierarquia tem um aspecto ainda mais importante.

A elasticidade da demanda tende a zero ou torna-se negativa ao descer a escala de prioridades, em cada etapa sucessiva de crescimento econômico. O mesmo fenômeno ocorre com relação às categorias mais importantes de produtos. O consumo per capita de alimentos básicos (pão, batata, etc.) nos países mais industrializados mais ricos está diminuindo hoje de forma muito perceptível, tanto em números absolutos quanto em percentual das despesas nacionais em termos monetários. O mesmo vale para as frutas e vegetais locais, as roupas íntimas básicas, para as meias bem como para móveis básicos. As estatísticas também indicam que, apesar da crescente diferenciação de gostos e produtos, o consumo global de alimentos, roupas e sapatos tendem a ficar saturado e até mesmo declinar.


Padrões de consumo


Esses fatos refutam a ideia burguesa e stalinista de que as necessidades das pessoas comuns aumentariam sem limites. A saturação das necessidades básicas é uma tendência verificável no Ocidente, não só porque diminuem depois de atingir um determinado nível, mas também porque há uma mudança na motivação. Modelos racionais de consumo substituem o desejo supostamente instintivo de consumir cada vez mais. Aqui, o que é "racional" não precisa ser ditado (não deve ser ditado) por forças de mercado, por planejadores burocráticos ou por especialistas oniscientes.

O consumo de alimentos é um exemplo eloquente deste processo. Desde tempos imemoriais a humanidade vive à beira da fome. Mesmo em nosso século este foi o destino da grande maioria da população do planeta. Nessas condições, é natural que os seres humanos sejam obcecados com a ideia de comer. Cinco anos de severas restrições de alimentos na Europa durante a Segunda Guerra Mundial foi suficiente para causar uma verdadeira explosão de gula assim que uma espécie de "consumo ilimitado de alimentos" foi novamente possível a partir de 1945 (em alguns países europeus muito mais tarde). Quanto tempo esta reação durou?

Menos de vinte anos depois (uma geração!) as prioridades mudaram de uma forma espetacular. A regra passou a ser comer menos e não comer mais. A saúde se tornou mais importante do que a gula. Esta mudança fez não foi "imposta" como um "novo modelo de consumo" por médicos ou pelo setor de saúde. Ela foi estimulada pelo instinto de auto-preservação.

Muito antes do surgimento do setor de saúde essa mentalidade já existia entre os ricos que realizavam o "socialismo para si mesmos". O modelo de consumo de pessoas enfermas é semelhante. É bastante óbvio que ninguém se diverte tendo órgãos extraidos porque a cirurgia é gratuita. O aumento acentuado no consumo de medicamentos após a guerra, bem como consumo de dentaduras e óculos após a introdução de cuidados de saúde gratuitos na Grã-Bretanha não se deveu majoritariamente a uma aceitação passiva das pressões da publicidade irresponsável das indústrias farmacêuticas. É o resultado de um atraso acumulado na satisfação das necessidades básicas.

Assim que esse atraso for superado e um certo patamar for alcançado, qualquer campanha sistemática para ilustrar os efeitos negativos do uso excessivo de medicamentos muito provavelmente causará os resultados esperados. Além disso, podemos, sem otimismo excessivo, observar que a campanha sobre os efeitos nocivos do tabaco levou a um declínio indiscutível no consumo de cigarros apesar dos esforços publicitários da indústria do tabaco.

Duas conclusões decorrem dessas reflexões. Na medida em que a "escassez" está cada vez mais limitada aos bens e serviços menos essenciais, é bastante possível reduzir o papel do dinheiro na economia em seu conjunto.

Bens e serviços, que não têm preço, tornam-se mais numerosos do que bens e serviços adquiridos. A suposição de que os consumidores só podem determinar suas necessidades indiretamente por meio da alocação de sua receita monetária para a compra de vários bens e serviços é um absurdo. Por que os indivíduos precisam do desvio monetário para perceber suas necessidades? Pelo contrário, eles precisam de um certa quantidade de comida, roupas, recreação, com alguns preferências e, portanto, dizem a si mesmos: "Tenho este tanto de dinheiro para atender às minhas necessidades, isso significa que não posso satisfazer a todas e que tenho que fazer escolhas." Só porque eles têm dinheiro não significa que andem por aí dizendo: "Graças ao dinheiro que tenho no bolso e à vitrine à minha frente, eu agora entendo que estou com fome!“ A maneira mais fácil e ao mesmo tempo a mais democrática para adaptar os recursos materiais às necessidades sociais não é interpor a moeda entre os dois, mas verificar as necessidades das pessoas simplesmente lhes perguntando quais são essas necessidades.

Sem dúvida, os países capitalistas avançados de hoje são compostos de milhões de seres humanos diferentes, com seus próprios gostos e inclinações individuais. Na transição para o socialismo, qualquer padronização uniforme da produção à maneira do capitalismo tenderá a ser reduzida. Em um certo nível de satisfação - ou saturação - das necessidades, produz-se naturalmente uma mudança do consumo passivo para o consumo ativo, bem como uma individualização das necessidades exige uma maior criatividade. Basicamente, haverá provavelmente duas categorias de novas necessidades. Haverá aquelas que serão desenvolvidos por minorias ousadas e ricas em imaginação, ansiosas para experimentar novos produtos e serviços.

Mas a produção em massa de novos bens não será automaticamente o produto de novas invenções. A maioria é que terá que fazer uma escolha consciente. Vinte por cento da população não terá o direito de impor a generalização novos bens para todos os cidadãos, mesmo que eles pudessem trabalhar mais por si mesmos para garantir a produção. Por outro lado, haverá casos em que a maioria irá optar por diferentes novos produtos ou serviços. Um reajuste fundamental do plano geral será necessário para adaptar-se às novas necessidades. Na história do século XX, essas grandes revoluções no consumo foram relativamente raras. Os três mais importantes foram as do automóvel, dos eletrodomésticos e dos produtos plásticos, que mudaram radicalmente a vida de centenas de milhões de pessoas.

Sob o socialismo tais transformações em massa ocorrerão não de maneira implacável e anárquica, mas racional e humanamente, para o pela primeira de forma ordenada e sob o controle daqueles que serão afetados. Tudo isto constituirá a base objetiva para o fenecimentoo da produção de mercadorias e da troca monetária. Ao mesmo tempo, a intensidade dos conflitos sociais poderá diminuir, desde que existam instituições por meio das quais a satisfação das necessidades básicas para todos se tornará uma experiência cotidiana, automática e habitual. Esta será o base subjetiva do fenecimento do dinheiro e da economia de mercado.

Na verdade, os conflitos sociais são extremamente violentos e amargos quando dizem respeito à comida, à terra, às formas básicas de trabalho, à educação e saúde básicas, aos direitos humanos e às liberdades essenciais. Mas não há exemplos de milionários se matando cotidiamente para poder entrar em praias reservadas nas Bahamas ou guerras que eclodem por obras-primas ou pela obtenção de assentos na Bolsa de Chicago. Intrigas políticas ocasionais, corrupção em grande escala e até mesmo assassinato podem ser usados para resolver conflitos sobre a alocação de "recursos escassos". Tais ações não podem ser comparadas aos horrores da fome irlandesa, da Grande Depressão ou do sistema de castas indiano.

Se tais conflitos, causados pela fome, desemprego e discriminação, desaparecem teremos um mundo diferente, com outros modelos de comportamento e outras estruturas mentais. Se o instinto de posse se limita a bens de luxo e a competição à disputas por charutos cubanos, estes serão conflitos qualitativamente diferentes daqueles que se produzem hoje. Não hesitamos em afirmar que tal mundo será melhor para 99% de seus habitantes.


Tirania sobre as necessidades?


Existem, no entanto, pessoas que não aceitam essas conclusões. Na verdade, assim que usamos o conceito de uma "hierarquia de necessidades sociais" em que alguns requisitos têm precedência sobre outros surge uma grande desconfiança, especialmente com base na experiência das economias burocraticamente centralizadas de nosso tempo. Com que direito, em nome de que autoridade e com quais resultados desumanos, tais prioridades seriam impostas sobre seres humanos reais?

Será que não é um "caminho para a servidão"? Em um livro recomendado por Nove, a Ditadura das Necessidades, Ferene Feher acusa o líderes da URSS, da China e dos países da Europa Oriental de exercerem tirania total sobre as necessidades de seus povos. O argumento é muito válido mas, ao mesmo tempo, parcial e contraditório. A contradição está no conceito que se repete constantemente na obra não só de Ferene Feher e Agnès Heller, mas também de Ota Sik, Branko Horvath, Wlodimierz Brus e outros partidários do "socialismo de mercado".

Não é por acaso que a mesma noção também é apresentada na escritos dos neoliberais mais bem preparados teoricamente e dos mais intelectualmente consequentes, para não mencionar os liberais clássicos como von Mises, von Hayek ou Friedman. Trata-se do conceito de "necessidades socialmente reconhecidas". Para todos esses teóricos, independentemente de suas divergências principais, a escassez de recursos é o fundamento sobre o qual a teoria econômica (toda teoria econômica) deve ser construída. A escassez de recursos, no entanto, implica automaticamente que as necessidades individuais não podem ser todas satisfeitas. Esta é a premissa implícita da fórmula "necessidades socialmente reconhecidas ": as necessidades individuais não são reconhecidas automaticamente pela sociedade. Apenas uma parte é reconhecida. Um individualista consequente deve concluir que a fórmula " necessidades socialmente reconhecidas" implica de qualquer forma em uma tirania da sociedade sobre as necessidades Individuais. Isso se aplica tanto a uma economia de mercado quanto a uma economia planificada. A tirania é inevitável. A única questão consiste em conhecer as formas específicas que ela assumirá e o quais serão as consequências políticas.

Para liberais assim como para os partidários do "socialismo de mercado" é óbvio que o despotismo do mercado – "o racionamento pelo portfólio"- é menos doloroso para os indivíduos e menos prejudicial para a liberdade pessoal do que o despotismo de um plano ou de um racionamento. Isto pode parecer plausível se compararmos casos extremos no hemisfério norte, por exemplo o racionamento por diferença de renda na Suécia do Estado de bem-estar social e o racionamento pelas decisões do Gosplan na União Soviética durante o períodode Stalin. Esses casos extremos constituem historicamente mais a exceção do que a regra. Se considerarmos o racionamento médio histórico sob o capitalismo pelas relações de mercado e diferenças de renda, que se caracterizaram durante os últimos cento e cinquenta ou duzentos anos por uma grande miséria em massa e uma desigualdade extrema de renda, a conclusão não é de todo óbvia.

Quanto menos as necessidades básicas são satisfeitas pela distribuição corrente de renda, mais as pessoas são indiferentes às formas específicas que assume esta falta de satisfação. De acordo com informações recentes, um padre católico declarou em Santiago do Chile que após a última desvalorização do peso chileno os pobres da cidade (50 da população!) não podem nem comprar pão com sua renda monetária.

Milton Friedman e seus “Chicago boys” terão dificuldade em convencê-los de que eles são "mais livres" do que os cidadãos da Alemanha Oriental que não têm falta de alimentos básicos, qualquer que seja a tirania exercida sobre suas outras necessidades básicas. A África contemporânea é outro exemplo de essa verdade. Quando a fome cobra seu tributo no Sahel, alguém poderia condenar a distribuição de alimentos por meio do racionamento como uma alocação "ditatorial" enquanto a venda desses alimentos implicaria em mais liberdade? Se uma epidemia estourar em Bangladesh, será que uma distribuição de medicamentos em determinadas quantidades pode ser considerada prejudicial em relação à sua venda no mercado? Na verdade, é muito menos caro e mais razoável atender às necessidades básicas não por meios indiretos de alocação através do dinheiro no mercado mas por um distribuição ou redistribuição direta de todos os recursos disponíveis.

Por outro lado, a moeda e o mercado são instrumentos que permitem uma grande liberdade do consumidor onde necessidades básicas já estão satisfeitas. Na verdade, a liberdade do consumidor implica a escolha do consumidor e, diante das necessidades efetivamente básicas, o consumidor simplesmente não tem escolha. Não escolhemos entre pão e um assento em um avião. ensino fundamental e um segundo aparelho de televisão, saúde e um tapete persa. O dinheiro, como instrumento de liberdade do consumidor, só é eficaz para decisões sobre bens relativamente supérfluos em um alto grau de igualdade de renda. Como uma forma para determinar as linhas fundamentais de alocação de recursos é bastante injusto e ineficiente.

Claro, se uma sociedade decide democraticamente priorizar a satisfação das necessidades básicas ela reduz automaticamente os recursos disponíveis para a satisfação de necessidades secundárias ou de luxo. Nesse sentido, não podemos evitar uma certa “ditadura sobre as necessidades” enquanto as necessidades não atendidas não tenham se tornado completamente marginais. É justamente nesse sentido que podemos observar as vantagens políticas do socialismo. Na verdade, é mais justo sacrificar as necessidades básicas de milhões de pessoas ou as necessidades secundárias de algumas dezenas de milhares ? Isso não significa que estamos considerando uma frustração das necessidades mais sofisticadas que se desenvolveram com o progresso da própria civilização industrial. A perspectiva socialista visa a um satisfação gradual de mais e mais necessidades e não a uma redução às necessidades básicas.

Marx nunca defendeu o ascetismo ou a austeridade. Pelo contrário, o conceito de personalidade totalmente desenvolvida, que é fundamental para sua concepção do comunismo, comporta uma grande variedade de necessidades humanas e sua satisfação. O declínio das relações de mercado e do dinheiro envolverá a extensão gradual do princípio da alocação ex ante a um número crescente de bens e serviços, com uma variedade mais ampla do que aquela existe hoje sob o capitalismo.



4. Tirania sobre os produtores


Os cidadãos dos países industrializados não são apenas consumidores. Durante a maior parte de suas vidas eles são, antes de tudo, produtores. Eles passam, em média, pelo menos nove ou dez horas por dia no trabalho e indo e voltando do trabalho. Já que a maioria as pessoas dormem oito horas, isto as deixa com seis horas para consumo, descanso, lazer, sexo e relações sociais.

É necessário notar aqui uma dupla restrição com a qual os partidários da "liberdade do consumidor" não estão muito preocupados. Quanto mais se multiplica o número de necessidades a serem satisfeitas no âmbito de uma população dada, mais trabalho é exigido dos produtores em um determinado nível de produção, tecnologia e organização do trabalho. Se as decisões sobre a carga de trabalho não são tomadas de forma consciente e democrática pelos próprios produtores, elas são impostas a eles de forma ditatorial, seja pelas leis trabalhistas desumanas de Stalin, seja pela lei implacável do mercado de trabalho com seus milhões de desempregados.

Tais recompensas ou punições implicam não apenas em salários mais elevados e salários mais baixos. empregos "melhores" ou empregos "piores". Eles também envolvem demissões periódicas, a miséria do desemprego (incluindo a miséria moral de se sentir inútil), a aceleração dos ritmos de produção, a escravidão dos controles e linhas de montagem, a disciplina autoritária das equipes de produção, o desgaste nervoso e físico, os efeitos nocivos do ruído, a exclusão de qualquer conhecimento do processo produtivo em seu conjunto, a transformação dos seres humanos em meros apêndices de máquinas ou computadores.

Por que milhões de pessoas deveriam se submeter a tais restrições para garantir um aumento de 10% na satisfação de suas necessidades para 50% ou mesmo 20% de seus contemporâneos? É exatamente isso que a economia de mercado os obriga a fazer se quiserem ter condições de sustentar suas famílias e a si mesmos. O mínimo que podemos dizer é que a causa não é apreendida. Não seria melhor desistir do vídeo, do segundo carro (mesmo do primeiro, se houver transporte público adequado) e trabalhar dez horas por semana a menos com muito menos estresse, se a satisfação de todas as necessidades básicas não estiver ameaçada por tal redução? Quem sabe o que os produtores decidiriam se fossem de fato livres para escolher? Em uma economia de mercado - qualquer economia de mercado, seja uma economia mista ou uma economia de mercado "socialista" - essas decisões não podem ser tomadas livremente pelos produtores. Eles são tomados independentemente deles, seja pelos empregadores ou por "leis objetivas" sobre as quais eles não têm controle. No entanto, esse despotismo não é inevitável.

O pretenso imperador está realmente nu. Não há razão convincente que impeça os produtores de uma comunidade livre de dizerem: "Somos um milhão. Se trabalharmos vinte e cinco horas por semana usando pelas vinte milhões de horas de trabalho um determinado equipamento e respeitando uma determinada organização do trabalho, estamos em condições de satisfazer as nossas necessidades básicas agora e no futuro previsível.

Podemos tentar simplificar a tecnologia e a organização do trabalho para reduzir o nosso tempo de trabalho para vinte horas por semana nos próximos vinte anos. Achamos que esta é a prioridade fundamental. Ainda há necessidades adicionais a serem atendidas, mas não estamos dispostos a trabalhar mais de cinco horas por dia agora e mais de quatro horas por dia em vinte anos para atender a essas necessidades adicionais. Então decidimos que a semana de trabalho será de vinte e cinco horas hoje e gradualmente se tornará vinte horas ao longo do próximos anos, mesmo que isso signifique que certas necessidades não serão satisfeitas." Com base em quais princípios o direito de decidir sobre o assunto seria retirado dos próprios produtores?



5. Cooperação informal objetiva


Nove nunca aborda o problema. Ele certamente pode responder que seu livro contém uma resposta tácita. Aliás, ele explica que, mesmo que o mercado tenha suas desvantagens, a única alternativa ao mercado como uma força organizadora consequente da economia é uma burocracia centralizada poderosa. Este é um dos leitmotivs de seu livro. Isso é um preconceito dogmático que ainda precisa ser demonstrado. Na verdade, podemos provar empiricamente que isso está se tornando cada vez mais falso, tanto no Ocidente quanto no Oriente, antes mesmo de realizada qualquer forma de socialismo "marxista".

O que Nove ignora é que a crescente contradição entre socialização objetiva do trabalho e a constante fragmentação do processo decisório pode ser cada vez menos controlada pelo mercado, bem como pelo planejamento centralizado burocraticamente. O que impede o colapso desses dois sistemas ineficientes e irracionais é o fato de serem contornados na prática por milhares de atos diários em direção a um cooperação informal objetiva. O que isso significa? Para entender o que está em jogo é necessário introduzir uma distinção importante. As relações monetárias não se identificam completamente com as relações de mercado: elas podem ser relações de quase-mercado ou pseudo-mercado.

Nesses casos, a mesma forma monetária esconde conteúdos bastante diferentes. Uma economia de mercado é uma economia guiada por flutuações de preços. Os "agentes econômicos", consumidores ou empresas, reagem aos sinais do mercado. Se tal reação não é produzida, é difícil provar que o sinal é economicamente importante (a menos que seja um axioma que não precisa de prova, portanto um dogma revelado). O que nos dizem sobre isso os estudos sobre o comportamento real dos consumidores, incluindo aqueles pertencentes à classe trabalhadores, nos países capitalistas avançados? Indicam que o grande maioria dos bens comumente produzidos são comprados em lojas ou distribuidores habituais, independentemente das flutuações de preços. Isto vale para, pelo menos, 80% do consumo de um consumidor médio.

Na verdade, os consumidores consideram seu tempo (e muitas vezes seus hábitos, o desejo de conversar com vendedores que conhecem ou com outros clientes) é mais valioso do que as diferenças marginais de preço. Em geral, é somente quando ocorrem desastres econômicos (aumento de 300% no preço do petróleo ou queda de 30% no renda após o desemprego) que os padrões de consumo respondem aos sinais ortodoxos do mercado - e mesmo assim não se aplica a todos os bens e serviços.

Há evidências de que respostas comuns não determinadas pelo mercado prevalecem sobre as reações do mercado em muitas áreas do comportamento econômico cotidiano. Mesmo em um bairro operário, um fornecimento repentino de maçãs baratas pode ser visto com suspeita (são de qualidade inferior ou é um truque de publicidade?). Um aumento limitado dos preços das viagens de férias pode estimular em vez de cortar tais despesas, desde que as receitas e emprego permaneçam inalterados. Tais relações econômicas não implicam uma economia real de mercado nem planejamento burocrático centralizado.

Na verdade, representam formas elementares de cooperação espontânea. Elas pode permanecer relativamente estáveis por anos ou até por décadas. Certamente, elas podem ser alteradas à vontade pelo indivíduos ou por famílias, e muitas vezes o são, mas sem que qualquer força exterior dite essas mudanças ou que qualquer comoção econômica importante ocorra.

O mesmo vale para muitas transações entre empresas. Uma busca frenética entre uma infinidade de fornecedores para reduzir os gastos em insumos em 5% não faz sentido para um grande empresa, mesmo porque os fornecedores habituais tendem a garantir prazos de entrega regulares e qualidade razoável de produtos, garantidos pela experiência, que é mais importante do que pequenas diferenças de preços. É assim que se age hoje nos países capitalistas e países "socialistas". baseando-se em hábitos, rotina e na cooperação natural que surge do conhecimento recíproco e resultados previsíveis.

Poder-se-ia levantar uma objeção: esses milhões de atos de cooperação voluntária, mesmo não sendo guiados por sinais do mercado ou por diretrizes burocráticas são, no entanto, apoiados e tornados possíveis por poderosas forças de centralização econômica, quer se trate do mercado ou de um plano econômico. A cooperação rotineira apenas comanda operações descentralizados relativamente pequenas.

Essa objeção contém um grão de verdade. Sua força está no contraste entre, por um lado, esses milhões de clientes de pequenas lojas que não não se preocupam com pequenas variações de preços e, por outro lado, a empresas como Nestlé ou Carnation que são obrigadas pelo mercado a prestar muita atenção ao preço de custo do leite, caso contrário correm o risco de falência. Não foi o mercado que realmente forçou esses gigantes a se fundirem ?

No entanto, a própria rede de distribuição da Nestlé é completamente racionalizada e sua produção de leite condensado também é automatizada e simplificada. Na verdade, o "mercado" não desempenha nenhum papel economicamente significativo nesta área uma vez que a Nestlé, como monopólio, pode impor preços de venda com base nos custos de produção média mais uma margem de lucro pré-estabelecida.

As pessoas precisam de leite de qualquer maneira e o consomem em quantidades mais ou menos predeterminadas. Assim, os únicos elementos econômicos importantes a este respeito residem na questão de saber qual a proporção da renda nacional (ou do produto nacional bruto) será gasto em consumo de leite e qual parte dos recursos produtivos será destinada para a produção e distribuição de leite em condições dietéticas e higiênicas ótimas. No âmbito das técnicas avançadas que já existem, todas as outras flutuações são absolutamente insignificantes.

O setor elétrico fornece um exemplo ainda mais impressionante. Uma rede nacional de energia - na verdade a rede internacional da Comunidade Econômica Europeia com alguns outros países - não precisa de forças de mercado ou burocracia centralizada para funcionar normalmente. A elasticidade marginal do demanda pode ser calculada com precisão suficiente com base em séries estatísticas.

A carga máxima em momentos específicos do ano pode ser planejada com antecedência. Reservas suficientes podem ser mantidas para fazer frente a qualquer perigo de interrupção repentina ou qualquer aumento constante da demanda. O resultado é que a distribuição regular de energia elétrica entre centenas de milhões de consumidores não precisa essencialmente das forças de mercado ou de grandes burocracias. Ela pode ser regulada por computadores com base nos dados estatísticos acessíveis.

Na verdade, é o fato de cobrar por esses bens que está se tornando cada vez mais irracional (pelo menos para consumidores privados e empresas média, porque as poucas indústrias que são grandes consumidoras de energia podem continuar a pagar). Se o pagamento fosse removido seria possível eliminar 90% da burocracia existentes neste setor, tanto no Ocidente como no Oriente. Isso não pode ser generalizado no que se refere a todos os bens e serviços.

Os problemas de centralização são tecnicamente de tal natureza que a rotina não poderia substituir os órgãos decisórios. A divisão global de recursos (nacionais e internacionais) entre diferentes ramos de atividade e diferentes setores da sociedade deve ser gerida por ação deliberada. Mas precisamente a tendência para uma cooperação de fato cada vez maior entre as pessoas comuns, que se tem desenvolvido ao lado da socialização objetiva do trabalho, mostra que há um caminho entre o Cila das forças cegas do mercado e o Caribdis das gigantescas burocracias centralizadas: a autogestão democraticamente centralizada ou seja, articulada, baseada na cooperação consciente e livre.



6. Inovações e suas motivações


Mas não poderia esta "terceira solução" levar a uma idealização da rotina e do hábito, ou seja, a uma estagnação econômica? Certamente não no campo da produção, onde o interesse dos produtores em reduzir o seu tempo de trabalho e melhorar o seu ambiente criaria uma incentivo intrínseco para reduzir custos. Nós poderíamos talvez experimentar uma desaceleração no afluxo de novos bens de consumo. Uma mudança na tendência atual não teria, no entanto, repercussões significativas. Até os consumidores mais ricos conseguiram, afinal, viver felizes no passado recente sem ter jogos eletrônicos ou telefones celulares.

Somente uma concepção misantrópica da humanidade pode medir o progresso ou saúde relativas com base no número crescente de aparelhos de utilidade decrescente. Uma democracia socialista marcará um crescimento na civilização e não no mero consumo, ou seja, uma ampliação da gama de atividades e relações humanas significativas: criar filhos e ampliar a educação, cuidar dos doentes e deficientes, desenvolver um trabalho criativo, praticar as artes e as ciências, fazer experiências amorosas, explorar o mundo e o universo.

Será que uma sociedade que priorizasse o combate ao câncer e às doenças cardíacas, o estudo do desenvolvimento do caráter e da inteligência das crianças, a compreensão das neuroses e psicoses, seria tão restrita e aborrecida em comparação com o mundo alegremente dinâmico no qual moramos agora? A liberdade de ter uma saúde mental e física maior e mais durável seria menos importante do que a liberdade de comprar uma segunda televisão a cores?

A ausência de concorrência no mercado não implica de forma alguma uma ausência de inovação dos produtos. Ao longo da história, de fato, a maioria grandes descobertas e invenções foram feitas fora da estrutura mercantil. Quando começamos a usar o fogo, o lucro não existia. A agricultura e o uso de metais não foram criados pelo mercado. A imprensa não foi inventada para ganhar dinheiro. A maioria dos grandes avanços médicos - de Jenner a Pasteur e de Koch a Fleming - não foram movidos pela esperança de compensação financeira. A motor elétrico nasceu em laboratórios universitários e não em uma empresa trabalhando para o lucro. Até o computador, sem falar nos artefatos espaciais, foi projetado para fins públicos (ainda que militares) e não com a finalidade de enriquecer os acionistas privados.

Não há a menor razão para supor que o enfraquecimento das relações de mercado e das recompensas monetárias levará ao desaparecimento das inovações tecnológicas. De fato, o ímpeto para essas inovações reside em algo mais profundo do que a competição mercenária. Ela reside na propensão natural dos produtores para economizar seu trabalho e na curiosidade intelectual e científica espontânea dos seres humanos. Não há qualquer razão para aceitar a noção generalizada de que a igualdade social é um obstáculo à eficiência econômica. A prova do contrário pode ser fornecida pelos kibbutz israelenses, onde atualmente vive a terceira geração de pessoas imersas em um ambiente caracterizado por uma ausência fundamental de relações monetárias no domínio tanto de produção como do consumo. Escusado será dizer que o kibbutz não é um comunidade socialista.

Pelo contrário, é uma aldeia militar de colonos, uma cunha cravada contra o população palestina, com todas as tensões e corrupção que tal função comporta. Além disso, está integrado no quadro de uma economia capitalista que a subsidia e, portanto, torna-se cada vez mais externamente vinculada à relação entre capital e trabalho. Mas justamente por causa dessas condições desfavoráveis é ainda mais significativo que a mera abolição da moeda e das relações de mercado dentro do kibbutz tenham dado resultados tão análogos aos previstos por Marx e Engels.

Apesar do desaparecimento das recompensas e sanções monetárias as pessoas no kibbutz produzem normal e eficientemente, de fato de uma forma mais eficiente, em média, do que a economia de mercado que o cerca. Nenhuma forma não monetária nova de desigualdade econômica, privilégio, exploração ou opressão surgiu. A violência e o crime quase desapareceram. Não há prisões ou campos de trabalho "correcionais". O nível médio de saúde, cultura e bem-estar é notavelmente superior ao da sociedade israelense como um todo. Há liberdade política e cultural ilimitada.

Tudo isso é confirmado não apenas pelos defensores do sistema mas também por observadores muito críticos, como o psicanalista Bruno Bettelheim, o liberal Dieter Zimmer e o sociólogo Melford Spiro. Há certamente muitos conflitos geracionais e de gênero. O kibbutz não é uma utopia realizada. As Inclinações e os comportamentos individualistas não desapareceram de forma alguma como resultado de uma igualdade socioeconômica. Afinal, por que eles desapareceriam? A característica de uma sociedade sem classes não será uma similaridade dos indivíduos que fazem parte dela, mas a maior diferenciação entre o maior número de indivíduos dentro dela. O objetivo do socialismo não é a socialização de pessoa mas o desenvolvimento mais amplo da personalidade única de cada indivíduo.



7. Autogestão articulada


O problema da motivação para a eficiência, cooperação e inovação não é absolutamente insolúvel em uma democracia socialista. Uma dificuldade mais imediata reside na institucionalização da própria soberania popular. Como podemos combinar a máxima satisfação das necessidades dos consumidores com o mínimo de trabalho para os produtores? Alec Nove insiste com razão nesta contradição que nenhum marxista sério pode contestar.

Mas registrar uma contradição real - neste caso a impossibilidade de produzir ao infinito bens e serviços em horas de trabalho humano que tendem a uma ou zero horas por semana, exceto em uma robotização "total" que ainda está nas brumas de um futuro distante – não significa que seja impossível aumentar drasticamente a satisfação das necessidades de todos os seres humanos e, ao mesmo tempo, reduzir não menos dramaticamente a carga e a alienação do trabalho dos produtores diretos. Um sistema articulado de autogestão pode avançar muito na consecução desses objetivos. Seus mecanismos e instituições fundamentais poderiam funcionar da seguinte forma:

Congressos regulares - digamos, para simplificar, anuais - conselhos de trabalhadores e nacional-populares - e o mais rápido possível internacionais - determinariam a divisão da renda nacional em suas principais linhas partindo de alternativas coerentes previamente discutidas por todos os cidadãos durante as eleições dos delegados aos congressos. As escolhas - ou seja, as principais consequências previsíveis de cada opção - devem ser claras: tempo médio de trabalho por semana; necessidades prioritárias para todos a serem atendidas pela alocação garantida de recursos (distribuição "gratuita"): volume de recursos destinados ao "crescimento" (fundos de reserva + consumo da população adicional + investimento líquido de acordo com escolhas tecnológicas claramente especificadas); volume de recursos que permanecem para bens e serviços "não essenciais" a serem distribuídos por mecanismos monetários; política de preços de bens e serviços distribuídos através do mercado. O quadro geral do plano econômico poderia, portanto, ser estabelecido com base nas escolhas conscientes da maioria daqueles interessados.

A partir dessas escolhas um plano geral coerente será então esboçado. usando tabelas de entrada-saída e inventários mostrando recursos disponíveis para cada ramo de produção (setores industriais,transporte, agricultura e distribuição) e da vida social (educação, saúde, comunicações, defesa se ainda necessária, etc.). Congressos nacionais e internacionais não irão além destas instruções gerais e não se preocuparão em dar detalhes para cada filial ou unidade de produção ou região.

Órgãos de autogestão - por exemplo, congressos de conselhos de trabalhadores da indústria alimentícia, da indústria de calçados, das indústrias de eletrônica, aço ou energia – terão que dividir o tempo de trabalho previsto pelo plano geral entre as unidades de produção existentes e/ou projetar a criação no próximo período de unidades de trabalho adicionais, se a consecução dos objetivos de produção tornar necessário com o tempo de trabalho dado. Eles iriam fixar a média tecnológica (levando ao nível tecnológico ótimo com base no conhecimento existente) - ou seja, a produtividade média do trabalho ou os "custos de produção" médios – dos bens a serem produzidos, mas sem eliminar as unidades menos produtivas enquanto a produção agregada não atender a todas as necessidades e enquanto não se puder garantir novos postos de trabalho para os produtores delas em condições aceitáveis por eles.

Nas unidades de produção de equipamentos, os coeficientes técnicos decorrentes de decisões anteriores irão, em grande medida, determinar toda a produção. Nas indústrias de bens de consumo, toda a produção será determinada mediante consultas prévias entre conselhos de trabalhadores e congressos de consumidores eleitos democraticamente pela massa dos cidadãos. Diferentes modelos – por exemplo, diferentes tipos de sapatos - serão apresentados e o os consumidores poderão criticá-los e substituí-los por outros. Exposições e folhetos publicitários serão os instrumentos de verificação.

Referendos de consumidores poderão ser organizados e é nesta base que os modelos de bens de consumo podem ser escolhidos. Em comparação ao mecanismo de mercado, a grande vantagem de tal sistema residirá no fato de que os consumidores terão uma maior influência sobre o escolha da produção global (com a eliminação da superprodução), que se tornará empiricamente ótima após alguns anos. O balanço das preferências do consumidor e da produção real ocorrerá antes da produção e não após a venda, com a produção de um estoque necessário de reservas sociais produzidas adicionalmente.

Os conselhos operários fabris estarão então livres para transferir essas decisões dos ramos para o nível das unidades de produção de acordo com as suas preferências – organizando os processos de produção e de trabalho de forma a obter a maior economia de tempo de trabalho possível. Se eles puderem atingir os objetivos de produção trabalhando vinte horas por semana em vez de trinta, após terem submetido os seus produtos a controles de qualidade, poderão obter uma redução do tempo de trabalho sem qualquer redução no consumo social.


A superioridade da autogestão


Alec Nove explica: "Em nenhuma sociedade pode uma assembleia eleita decidir por cento e quinze votos a setenta e três a atribuição de dez toneladas de couro ou se é preciso produzir cem toneladas a mais de ácido sulfúrico. " (op. cit., p. 77) Em nosso modelo de autogestão articulada, nenhuma assembleia deverá tomar decisões dessa natureza; ao mesmo tempo nenhuma assembleia “central” nem nenhum comitê de planejamento terá que tomá-las.

Mas por que os congressos dos conselhos de trabalhadores da indústria do couro não poderiam decidir por maioria (mais provavelmente por consenso após discussão) o destino do couro (se a decisão sobre quantidades menores deve ser deixada para o conselho de fábrica, é outra questão) uma vez que as metas de consumo de produtos de couro terão sido definidas por outros órgãos? Os delegados de tal congresso não serão capazes de decidir sobre isso melhor do que qualquer tecnocrata ou do que um computador, pois eles conhecem sua indústria e podem levar em consideração uma série de imponderáveis que nenhum mercado nem nenhum comitê central de planejamento introduzirá em seus cálculos, exceto, no melhor das hipóteses, por puro acaso?

De fato, erros gigantescos na alocação de recursos, que nenhuma assembleia de trabalhadores conscientes cometeria, estão sendo cometidos o tempo todo em uma economia de mercado. As empresas planejaram a construção do Barragem de Itaipu no Brasil a um custo de cinco bilhões de dólares. O custo é dezoito bilhões hoje e a conta ainda não é definitiva. No trust americano de máquinas agrícolas Deere novos produtos tiveram que ser redesenhados várias vezes, apesar da concorrência muito acirrada, devido a divergências endêmicas entre os técnicos de design e os de fabricação. Durante uma recente recessão, a empresa automobilística bávara BMW descobriu, de repente, que poderia reduzir seu estoque atual em matérias-primas, de peças de reposição em mais de 50% .

Tais exemplos poderiam ser multiplicados à vontade. Organismos de autogestão também poderão se encarregar da administração dos serviços públicos, habitação, saúde, educação, telecomunicações, transporte ou distribuição. Também nestas áreas haverá conselhos eleitos pelos cidadãos que terão de ser consultados antes das decisões tomadas serem aplicadas. Organizações regionais e locais usarão o recursos alocados desta forma, novamente com o máximo de livre iniciativa, mas que garanta uma exploração ótima com o objetivo de satisfazer os consumidores e reduzir o esforço dos produtores.

Tal sistema dará conteúdo concreto à concepção marxista de declínio gradual do Estado. Ele permitirá pelo menos a substituição de uma só vez de metade dos ministérios atuais por órgãos autogestionários. Ele também implicará uma redução drástica do número de funcionários públicos, inclusive na área de planejamento. Isso significará ao mesmo tempo que milhões de pessoas não só poderão ser consultadas, mas também participar efetivamente nas decisões e na gestão direta da economia e sociedade. A divisão social do trabalho entre administrados e administradores, entre dirigentes e dirigidos começará a desaparecer.

A administração deixará de ser monopolizada ao "nível central", tal como a autogestão não se limitará ao nível empresarial. Haverá um combinação de níveis centralizados e descentralizados. A grande massa de cidadãos envolvidos nos processos de tomada de decisão não será envolvida nesta atividade como profissionais permanentes. Já que as decisões em questão terão uma influência direta no bem-estar e nas condições de trabalho, pode-se supor que eles não terão uma atitude indiferentes às suas responsabilidades mas que se comprometerão seriamente no processo de administração.

A redução da semana de trabalho e o potencial de informação e comunicação dos computadores serão a principal base material de uma verdadeira dispersão do poder. Como podemos determinar a renda monetária adicional das unidades de produção e distribuição para além da alocação garantida de bens e serviços gratuitos? Essa renda dependerá de um controle de qualidade e satisfação dos consumidores dentro de uma estrutura dada com um coeficiente referente ao estresse no trabalho (aqueles que trabalham em minas e outros locais de produção insalubres terão remunerações mais altas).

Quanto aos bens intermediários, a regularidade das entregas fará parte do índice. Tal sistema terá a vantagem de não criar obstáculos ao fluxo informações gratuitas e honestas sobre os recursos e potencialidades das unidades de produção e distribuição, porque a força de trabalho autogestionada não terá interesse em esconder a realidade. Nove insiste muito no fato de que não se pode garantir antecipadamente um fluxo honesto de informações.

Mas tende a esquecer a causa principal da transmissão de dados falsos em sociedades como a URSS, ou seja, o interesse material de líderes industriais, sua renda dependendo da realização e superação do plano. Não se pode remover as consequências sem remover a causa. Além disso, um fluxo de informações por computador que acompanha automaticamente o fluxo de mercadorias pode ajudar muito a reunir dados corretos para o planejamento democrático centralizado.

Como tal sistema poderia ser articulado em escala global? É necessário salientar desde o início que a autogestão democrática não significa que todo mundo decide sobre tudo. Se partimos de tal suposição, a conclusão seria óbvia: o socialismo não é possível. Mas não se trata disso. Algumas decisões podem ser tomadas melhor a nível de oficina, outras no nível de fábrica, outras ainda em nível de bairro, em nível local, regional, nacional, continental e finalmente internacional.

Acompanhando Nove, nossa discussão até agora tem sido em nível nacional. Que decisões podem e devem ser tomadas a nível internacional? Quatro áreas aparecem imediatamente. A primeira diz respeito a todas as decisões que envolvem uma redistribuição geral de recursos humanos e materiais necessários para garantir o rápido desaparecimento dos males sociais e culturais do subdesenvolvimento (fome, mortalidade infantil, doenças e analfabetismo). A segunda diz respeito à prioridade da atribuição de recursos naturais escassos, dos quais apenas a a população mundial como um todo tem o direito de decidir. A terceira inclui tudo relacionado ao ambiente natural e ao clima do planeta. Finalmente, há obviamente as decisões relativas à proibição de armas de destruição em massa, à fabricação de substâncias tóxicas, etc.

Esses parâmetros globais resultam de restrições com relação aos recursos disponíveis para o planejamento e atendimento das necessidades, que terão de ser decididos em cada continente e em cada país. Por exemplo, logo que tenhamos fixado a quantidade global de toneladas de aço a utilizar na América, Europa ou Ásia, os produtores e consumidores destes as regiões terão a liberdade de atribuí-los de acordo com a sua escolha. Se, apesar de todos os problemas ambientais ou outros, eles querem manter a predominância de carros particulares e continuar a poluir suas cidades, será um direito deles. As mudanças no comportamento de longo prazo do consumidor são geralmente lentas.

É improvável que trabalhadores dos EUA desistam de seus carros privados após a revolução socialista. Mas a norma que outros grupos sociais, que não eles mesmos, pudessem impor mudando seus hábitos de consumo seria mais prejudicial do que o prolongamento por algumas décadas da poluição atmosférica em Los Angeles. A emancipação da classe trabalhadora - que hoje representa pela primeira vez na história o maioria absoluta da população mundial - só pode ser alcançada pelos próprios trabalhadores como são, não por pessoas de outro mundo, mas pelos seres humanos concretos com todas as suas fraquezas.



8. A pobreza "mista", uma crítica geral


Alec Nove propôs um modelo de cinco setores de "socialismo realizável": um combinação de empresas estatais, empresas socializadas, cooperativas, pequenas empresas privadas e empresas individuais. À primeira vista as diferenças entre este modelo e o que acabamos de esboçar podem parecem relativamente pequenas. No entanto, apesar de algumas coincidências, o dois modelos divergem em três aspectos essenciais.

O primeiro diz respeito à natureza das unidades de produção ou distribuição predominante. Para Nove, o cálculo dos custos individuais envolve uma rentabilidade individual das unidades em questão, ou seja, o rendimento dos grupos ou pessoas envolvidas devem se relacionar com as diferenças dos custos calculados em moeda (ou em valor) dos insumos e produtos. Em outras palavras, essas unidades são empresas independentes. Nós não estamos de acordo com tal abordagem.

A nosso ver, se vincularmos a renda de indivíduos ou grupos aos "lucros", introduzimos poderosos incentivos à irracionalidade econômica, arriscando devastação social, uma vez que decisões com consequências gerais para toda a comunidade são tomadas com base em interesses particulares e fragmentados. Pela mesma razão, não acreditamos que acordos entre produtores-consumidores devem basear-se em recompensas ou sanções monetárias. Em outras palavras, as relações reais do mercado, ou seja, a troca de mercadorias mediadas por dinheiro, devem ser essencialmente limitadas à relação entre os setores privado e cooperativo, por um lado, e o consumidor individual ou o setor socializado do outro. A consequência disso será que, nos países industrialmente avançados, tais relações terão apenas um papel secundário na produção e no consumo. A dinâmica da transição irá em direção ao definhamento da produção de mercadorias e não rumo a sua ampliação.

Em segundo lugar. Nove faz uma distinção entre um "setor estatal" centralizado, em que a autogestão pelos produtores seria impossível devido à escala e complexidade técnica da produção, e um " setor socializado " das empresas menos integradas onde a autogestão seria realizada. Também parece supor que as diferenças de renda seriam indispensáveis em ambos os casos, talvez até no setor cooperativo.

Nove escreve: "As diferenças de renda (uma espécie de mercado de trabalho) representam a única alternativa conhecida para a direção do trabalho: é essencial aqui evitar qualquer confusão. Alguém poderia dizer que no estrutura de uma comuna ou de um bom kibbutz, pode-se ter completa igualdade e uma rotação no trabalho... Mas isso não pode ser alcançado ao nível de toda a sociedade em parte porque só é aplicável a um número número limitado de pessoas que se conhecem e que podem se encontrar todos os dias, e em parte porque tais comunas só atrairiam entusiastas que gostam de tal estilo de vida. " (op. cit. p. 211)

O argumento parece basear-se no senso comum quando na verdade se baseia em uma série de dogmas e preconceitos não comprovados. Não é verdade que a única escolha é entre uma "gestão do trabalho" despótica e um mercado de trabalho. A distribuição cooperativa do trabalho é uma alternativa real. Nem é verdade que grandes complexos não possam ser administrados sem diferenças de renda. No século XIX e início do século XX sindicatos e igrejas formados por dezenas e centenas de milhares de pessoas eram muitas vezes geridos por pessoas que não tinham privilégios materiais.

Isso também se aplica, como o próprio Nove aponta, para grandes organizações científicas para não falar das grandes cooperativas de produção. Em outro lugar Nove aponta corretamente que poucos professores prefeririam trabalham como catadores de lixo, mesmo sendo mais bem pagos. A experiência geral vai contra sua suposição. Este é um argumento que vale sim para os trabalho desagradáveis, sujos ou pesados e não para o trabalho administrativo ou qualificado (desde que a sociedade pague a formação profissional). Finalmente, a principal fraqueza do argumento de Nove reside em outro lugar, ou seja, na antítese que ele vê entre um "pequeno número de pessoas" e "grandes organizações". De fato, "grandes organizações não estruturadas", ou seja, atomizadas, não existem. Uma fábrica moderna, uma banco, hospital ou faculdade certamente não pertencem a tal categoria.

Todas as instituições deste tipo são na realidade baseadas em pequenas unidades de cooperação social objetiva: equipes de trabalho, escritórios, departamentos, turmas, etc... Por que é impensável que essas pequenas unidades se administrem a si mesmas e elejam delegados (inclusive por rotação) que poderiam administrar unidades maiores que, por sua vez, administrariam o conjunto ?

As condições prévias da autogestão democrática devem ser obtidas na maneira como funcionam as células reais das instituições não democráticas existentes, nomeadamente nas relações de trabalho de um pequeno número de pessoas que se conhecem, se encontram e precisam uns dos outros todos os dias; que, em outras palavras, não podem fazer o seu trabalho sem cooperação recíproca. Portanto, ao contrário do que Nove afirma, nós acreditamos que o alcance da autogestão é, em princípio, universal e não setorial e que recompensas monetárias e privilégios materiais não são essenciais para o exercício democrático das responsabilidades administrativas mas, pelo contrário, dificultam-no.

A terceira diferença fundamental entre o modelo de Nove e nosso projeto diz respeito ao papel da concorrência. Nove está ciente dos efeitos destrutivos e corruptores da concorrência sob o capitalismo. Mas ele quer manter os incentivos monetários em seu socialismo. Ele explica, portanto, que é necessário distinguir entre formas "benignas" e "indesejáveis" de concorrência. (op. cit. p. 204-205) Os exemplos que ele usa para esclarecer esta distinção na realidade demonstram que ela tem muito pouca importância do ponto de vista econômico.

É de fato óbvio que a concorrência por um lugar na Orquestra Nacional da Escócia, pela vitória em uma corrida nos Jogos Olímpicos ou mesmo pela eleição do conselho operário em uma empresa socializada nada tem a ver com concorrência para vender no mercado petróleo, aço, aeronaves ou mísseis. A primeira variedade de "competição" nunca provocou, pelo menos em nosso conhecimento, a miséria de milhões de pessoas (pode ter causado miséria individual, mas o socialismo marxista não tem ilusão de poder resolver todos os casos desta natureza). A segunda variedade, por outro lado, causou não só desemprego massivo e quedas drásticas no nível de vida, para não falar do expansão periódica da pobreza, como também da guerras com milhões de mortes.


Um falso dilema


Nove recorre cada vez mais a uma casuística involuntária porque defende a concepção convencional do mercado. A combinação de "mercado" e o "socialismo" em seu pensamento inevitavelmente o leva a contradições desconcertantes. Ele acusa os marxistas de terem uma concepção utópica do socialismo. O que ele não consegue entender é que sua própria suposição - um nível mais elevado de responsabilidade social livremente aceita pelos indivíduos em uma estrutura social que permanece marcada pela luta de todos contra todos por recompensa e enriquecimento financeiro - constitui o cúmulo da utopia.

Isso lembra de forma abrandada a colocação ingênua (ou cínica) de líderes soviéticos de que a URSS poderia avançar para a criação do "homem socialista", mantendo as desigualdades tanto de renda como de poder e o conflito universal por vantagens materiais privadas. Nove é na verdade prisioneiro de um falso dilema. A lógica de seu erro pode ser capturada na seguinte passagem: "Vamos supor que existam dezesseis ou mais empresas (socializadas ou cooperativas) engajadas na produção de um bem ou serviço. Suponhamos que sejam roupas de lã, pasta de dente, rolamentos de esferas, hotéis de veraneio ou outros. Elas baseiam suas atividades de produção nas negociações com seus clientes. Estes podem escolher de quem obter os bens e serviços de que necessitam. Eles podem todos obter de seus fornecedores, o quais eles podem escolher, aquilo de que têm necessidade. Elas têm um interesse intrínseco em satisfazer seus clientes. Nós gostaríamos que a motivação da competição não fosse principalmente monetária... Mas não podemos supor que a massa da população agirá apenas pela satisfação de ser5 bem sucedida, que não haverá necessidade de incentivos materiais e até desincentivos." (op. cit., p. 204)

Concordamos plenamente com a primeira parte desta argumentação. Limitamo-nos a especificar que, no caso da produção dos bens de capital mais sofisticados, não haveria dezesseis fornecedores. Mas a segunda parte não decorre em nada da primeira. Apresenta-se como uma espécie de suplemento ou apêndice ao passo que não tem base nem conexão.

Nove realmente assume que as pessoas só podem agir ou de uma maneira puramente desinteressada ou por incentivos monetários privados. Estas escolhas não são as únicas possíveis. Por que devemos excluir estimulantes ou mesmo desincentivos não monetários e não determinados pelo mercado? A experiência diária prova sua importância mesmo sob o capitalismo. Afinal, se mais de 99% dos motoristas obedecem ao sinal vermelho não é no geral para evitar multas, mas porque querem viver mais.

Esse instinto saudável de autopreservação não é alheio a outro instinto humano comum, o desejo de minimizar o trabalho incômodo, mecânico, chato e sem criatividade que simplesmente consideramos tempo perdido para a nossa existência. Há sempre um estimulo muito poderoso em reduzir o tempo de trabalho organizando-o melhor.

Mas, além disso, Nove parece ter esquecido a possibilidade de um "dividendo social". Por que uma quantidade adicional de bens e serviços gratuitos não estaria ligada ao desempenho anual global da sociedade, que se tornou transparente através do debate público e das telecomunicações? Será que todos os produtores e distribuidores não seriam estimulados a aumentar a quantidade e melhorar a qualidade de sua produção, a racionalizar sua organização do trabalho, se este dado aumento na quantidade de bens e serviços efetivamente produzidos e consumidos estivesse vinculado. por exemplo, a uma expansão específica de férias e viagens gratuitas (se tal foi a opção majoritária)?

Depois de construir uma polarização artificial de motivações subjetivas que a empurra para incentivos materiais individuais, Nove continua a ignorar consequências objetivamente irracionais de uma combinação entre uma vasta economia de mercado e um setor de bens e serviços livres e de propriedade social. De fato, se o lucro continua sendo o mecanismo fundamental para alocar recursos, não há razão para que as consequências negativas, embora conhecidas sob o capitalismo, não reapareçam. É significativo que quando Nove aborda a questão dos riscos do estímulo monetário seus exemplos são muito marginais. Ele não fala do gigantesco desperdício causado pela produção em função do lucro, ou seja, a capacidade de produção excedente, superprodução, desemprego, destruição de equipamentos e mercadorias. Todos esses fenômenos típicos atingem produtores e consumidores muito mais do que os alegados custos excessivos decorrentes da ausência de "disciplina de lucros e perdas". Esta é uma lição aprendida diariamente sob o capitalismo. Ela tem sido dolorosamente aprendida também nas sociedades pós-capitalistas.

A experiência prática nessas sociedades - especialmente na Iugoslávia e na Polônia, mas outros exemplos se seguirão - demonstra que as tentativas de corrigir as distorções do planejamento burocraticamente centralizado baseando-se cada vez mais em mecanismos de mercado leva, após alguns sucessos iniciais, a uma combinação crescente dos males da burocracia e dos males do mercado, cada um acentuando o outro em vez de mitigá-los. Essa conclusão vale também para a China, o caso mais favorável para os defensores do "socialismo de mercado", porque quanto mais atrasado o país está, mais os mecanismos de mercado continuam sendo necessários, especialmente na agricultura. Não há dúvida de que abandonar o legado desastroso do Grande Salto Adiante - a noção completamente irracional e mistificada da introdução imediata do comunismo - determinou grande progresso no campo chinês. A produtividade e a produção aumentaram e um superávit crescente está surgindo. Este foi o resultado da liberação de enormes energias produtivas do campesinato, provavelmente o mais experiente do mundo, com uma tradição de dois mil anos de agricultura intensiva sem paralelo na maioria dos países ocidentais, para não falar da Europa Oriental. Mas o excedente de grãos anda de mãos dadas com um excedente crescente de mão-de-obra rural à medida que menos pessoas produzem mais.

Como será essa superpopulação daqui a quinze, vinte ou trinta anos? Se deixada ao mercado, o resultado será o surgimento de desemprego gigantesco (o problema do desemprego já é grave nas cidades). Apenas a industrialização planejada pode absorver a população excedente rural e apenas uma industrialização democraticamente planejada e não burocraticamente pode alcançar tal resultado sem provocar no campo a devastação que a coletivização forçada - reação de pânico às consequências do crescimento do mercado - causou na União Soviética.

Negligenciando o alcance de todas essas consequências negativas do mercado, Nove oferece-nos uma justificação positiva, ou seja, o fato de que o mercado dispersaria o poder de decisão e, portanto, representaria um baluarte contra tirania. Esta é, sem dúvida, a justificativa liberal tradicional para mercado. Mas esta é uma conclusão falsa sob uma camuflagem socialista. A sua aceitação concomitante de diferenças de rendimentos a favor de administradores a esclarece. De fato, se os diretores obtiverem benefícios materiais de suas posições de liderança, eles inevitavelmente tendem a transformar essas posições em um ativo permanente, ou seja, apegar-se a elas com todo os comportamentos economicamente irracionais e politicamente opressivos que daí decorrrem. O poder tende a ser monopolizado. A dispersão de poderes que Nove prevê não podem ser realizados se o exercício do poder não está separado dos privilégios materiais. Não é uma profissão de fé, mas uma conclusão empírica tirada de toda a história da humanidade que conhecemos. Quando poder e privilégio andam de mãos dadas, a lógica se afasta democracia e se dirige para o monopólio da informação, do conhecimento e do controle por uma pequena minoria. Nove quer promover o socialismo democrático. Mas uma vez que ele aceita benefícios monetários para dirigentes, não é por acaso que termine por falar da necessidade de um Estado forte (op. cit., p. 229).

Apesar da dureza de sua crítica ao "socialismo realmente existente", ele conclui por duas proposições desagradavelmente mais próximas da realidade da ordem burocrática da URSS do que do socialismo marxista. É significativo que ele use quase os mesmos termos da burocracia polonesa criticando a recusa do Solidarnosc em aceitar uma redução do nível de vida dos rabalhadores poloneses (op. cit., p. 178). Ao fazer isso, ele esquece que a responsabilidade da desorganização econômica não é responsabilidade das reivindicações dos trabalhadores e das greves, mas da gestão burocrática antes e depois de 1980. Não é preciso nem levamos em consideração as contradições insolúveis entre a autogestão dos trabalhadores e o "socialismo de mercado" que estão explodindo hoje em Iugoslávia. Se as "leis econômicas objetivas" agindo sobre as costas dos produtores - é precisamente isso que significa a lei do valor – decidem em última instância em questão de produção e emprego, então os trabalhadores não podem determinar o gerenciamento nem a nível de fábrica, nem a nível local ou nacional, e a autogestão continua a ser uma ilusão. Não há outra escolha ?

O objetivo deste artigo é afirmar que felizmente uma terceira solução existe: a autogestão democraticamente articulada e centralizada, o autogoverno planificado dos produtores associados. A soberania popular não depende da presunção de uma harmonia preestabelecida ou perfeita entre os interesses gerais e os interesses particulares dos membros de uma comunidade. Pelo contrário, é certo que haverá conflitos de interesse entre produtores e consumidores, unidades tecnicamente mais avançadas e unidades menos avançadas, pessoas socialmente mais ativas e menos ativas, regiões econômica e culturalmente mais desenvolvidas e regiões menos desenvolvidas. A autogestão democrática é precisamente um sistema para evitar essas contradições minem qualquer plano racional ou qualquer cooperação social, causando novos conflitos de classe e nova violência assassina.

O "socialismo de mercado", por outro lado, não é uma solução para os males capitalistas do livre mercado nem para os da paródia burocrática do socialismo. A economia mista que ele propõe é apenas miséria mista. A economia de um socialismo viável e desejável sem produção mercantil irá substituir ambos. Ao contrário da crença de Nove, tertium datur. Em última análise, nosso debate toca no problema central da história humana: a humanidade tem a possibilidade de determinar seu próprio destino e em sob quais condições? Será que a autoemancipação e autodeterminação permanecerão para sempre um sonho não realizado com os efeitos que daí resultam? De fato, se as ciências sociais e a prática social não conseguirem exercer um controle sobre a evolução social comparável ao que as ciências naturais alcançaram até agora sobre a natureza, então o progresso das ciências naturais corre o risco de explodir contra nós e nos destruir.

No velho debate sobre as potencialidades da razão e o peso morto da fatalidade - em última análise, um conflito entre conhecimento e superstição -, as "leis do mercado" representam apenas o destino cego, sob a tênue camuflagem de uma "racionalidade" parcial. Será que o entendimento por parte da humanidade das leis de sua própria evolução continua sendo um fruto proibido que jamais seremos capazes de provar?


* Ernest Mandel (1923-1995) foi um economista e militante marxista belga, da corrente trotskista, dirigente da IVª Internacional S.U. (Secretariado Unificado). Autor de obras como Tratado de Economia Marxista, O Capitalismo Tardio e A Formação do Pensamento Econômico de Karl Marx.


Tradução: Luiz Souto

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