HÁ 150 ANOS ATRÁS, A COMUNA
- paraumnovocomeco
- 11 de abr. de 2021
- 10 min de leitura
03/04/2021

Intervenção de Aldo Casas realizada em 23 de março de 2021 na Jornada Comemorativa "Relâmpago que Ilumina Horizontes". 150 anos depois da Comuna de Paris, organizada pelo CEIICH (México), no debate de apresentação do livro de Sylvie Braibant Elisabeth Dmitrieff. Comunera, aristócrata y incendiária (Herramienta, 2021).
HÁ 150 ANOS ATRÁS, A COMUNA - Aldo Casas* Tradução de Luiz Souto
Boa tarde e muito obrigado aos organizadores desta importante e necessária Jornada Comemorativa. É um prazer imenso poder manter este diálogo com todes, mesmo à distância, e ainda mais se o faço com o meu amigo Néstor López, abordando temas que temos vindo, com divergências e também convergências, discutindo há anos, o que nos permite continuar pensando e avançando nisso de entender o mundo para transformá-lo. Há 150 anos as mulheres e os homens de Paris tentaram “tomar o céu de assalto”, como se escreveu metaforicamente, porque as circunstâncias os levaram a mudar o mundo em que viviam. As circunstâncias ... e o exército prussiano que os cercou enquanto o exército contrarrevolucionário francês se reagrupava em Versalhes, não para defender a cidade e sim para esmagar os parisienses. Nosso mundo, obviamente, não é o dos communards [comuneiros]. Mas a isso deve ser acrescentado algo que também é evidente para mim, mas ao qual não é dada a devida atenção: o mundo em que vivemos está mudando rapidamente desde que entramos nesta era de crise estrutural do capital, catástrofe ambiental e pandemia. A instabilidade e imprevisibilidade que marcam as nossas vidas, especialmente as dos jovens, as das mulheres e especialmente as de milhões e milhões de crianças pobres, nos remetem a situações tão dolorosas como as daqueles operários e artesãos que fizeram a Comuna e que passavam a maior parte do tempo não trabalhando, mas procurando trabalho e tentando não morrer de fome. A Comuna foi fruto de um daqueles acasos com os quais se tece a história e também de uma experiência prática de democracia sem precedentes, mas preparada por dois anos de discussões e intensas práticas associativas em bairros populares. Uma experiência que nos permitiu vislumbrar a superação da cisão entre homem e cidadão, entre produtor e consumidor, entre grevista e usuário, entre trabalho manual e intelectual, entre homem e mulher. Uma revolução cheia de experimentações e rupturas que modificaram os limites, as formas e as modalidades da luta pela emancipação do trabalho. Mostrou que era possível construir, organizando a solidariedade, uma comunidade que era ao mesmo tempo uma ditadura revolucionária e uma democracia radical e participativa, que se tornou uma referência para todas as tentativas posteriores de instauração de uma democracia comunal, soviética ou conselhista. Marx seguiu apaixonadamente os princípios enunciados, as políticas desenvolvidas e os contornos da sociedade futura que podiam ser vislumbrados na urgência e no cerco daquela cidade sitiada. Observa seu caráter inovador e fundador, seu brilho, seu poder expansivo. Revisou suas opiniões anteriores sobre formas cooperativas e federalismo, alegrou-se com pequenas coisas como a abolição do trabalho noturno para padeiros ou a proibição de práticas patronais que reduziam os salários com descontos arbitrários para aumentar fraudulentamente seus lucros ... Mas enfatizou sobretudo o histórico: pela primeira vez os explorados governavam a si mesmos, lançando as bases para transformações de ressonância universal: a urgência os impelia a inventar outro modo de vida na adversidade e no perigo, colocando como necessidade o princípio da apropriação dos meios de produção. Sem ignorar as contradições e disputas internas que existiam apesar do "sincretismo" que a própria existência da Comuna impunha a todas as correntes e tradições do movimento operário, Marx prestou atenção sobretudo aos horizontes que abriu e às possibilidades que iluminou. Foi um novo tipo de revolução que marcou uma ruptura. “A grande medida social da Comuna foi a sua própria existência e a sua ação”, escreve, acrescentando que é uma República que implica a sua própria superação, a promessa de destruir “a máquina burocrático-militar do Estado”. Embora não tenham chegado a quebrar esse instrumento coercitivo, os communards [comuneiros] apontaram um caminho: o da “reabsorção do poder do Estado pela sociedade”, o da restituição “ao corpo social de todas as forças até então absorvidas pelo Estado, parasita que se alimenta da sociedade e paralisa seu livre movimento ”. Essas frases quase anarquistas são de Marx, para quem a Comuna "quebra o poder do Estado moderno" que passa a ser supérfluo sem que isso signifique o desaparecimento do político em uma pura autogestão social ou acreditar que se poderia prescindir das "funções centrais que são necessárias para as necessidades gerais do país”. É por isso que saúda e elogia o surgimento de um novo tipo de governo: a Comuna era "um governo da classe trabalhadora", uma espécie de poder político não estatal dos trabalhadores, "a forma pela qual a classe trabalhadora se toma o poder político”. As democracias parlamentares burguesas são sempre formas mais ou menos disfarçadas de governo ditatorial do capital. Uma alternativa socialista só pode emergir desde baixo, baseada na auto-atividade e na auto-organização democrática da classe trabalhadora e de todos os setores explorados e oprimidos. Organizações de base que não são criadas para colocar em prática determinadas ideias preconcebidas, mas para resolver problemas concretos na luta contra a exploração, a opressão e, diríamos hoje, a necropolítica. E quando as massas começam a interferir nas instâncias em que seu destino é decidido, surge a oportunidade de inventar e implementar uma ordem política e socioeconômica alternativa. No legado da Comuna de Paris destaca-se a premissa de que, em um movimento que aspira à emancipação universal, a participação massiva das mulheres é fundamental: elas se auto-organizaram no movimento, participaram dele e nele afirmaram seus próprios interesses. A classe assalariada deve se emancipar e só pode se autoemancipar sendo capaz de eliminar todas as formas de opressão de alguns seres humanos sobre outros. Portanto, acabar com a opressão, a discriminação e o menosprezo das mulheres é uma parte substancial das aspirações socialistas e comunistas. É justo reconhecer que a mobilização massiva, dinâmica e radical dos feminismos em nossos dias reúne e desenvolve aquela indicação pioneira da Comuna, teorizada entre outras por Louise Michel. A compreensão estratégica desses eventos requer levar em conta a temporalidade da luta política, que não é o tempo mecânico do relógio e do calendário. É um tempo sincopado e discordante, em que as tarefas do passado, do presente e do futuro se sobrepõem, abertas ao incerto e ao perigoso. Um exemplo notável disso é que um emissário enviado por Marx a Paris foi a jovem russa Elisabeth Dmitrieff. Esta era um admiradora do narodnik Chernichevsky, tinha acabado de ficar em Londres por três meses, discutindo quase diariamente com Marx sobre a validade e o potencial da obschina, a velha comuna rural russa, sobre a qual Marx diria anos depois que , complementando-se com o a revolução proletária "pode servir de ponto de partida para uma evolução comunista", uma sugestão ousada que, infelizmente, a socialdemocracia russa em sua totalidade ignorou ... Mas voltemos a Paris, para dizer que, com pouco mais de vinte anos, Elisabeth chegou quando a Comuna acabara de ser proclamada, se deixou levar pela insurreição e se tornou uma figura tão reconhecida como Louise Michel, Nathalie Le Mel ou André Leo. Dmitrieff criou e dirigiu o Sindicato das Mulheres pela Defesa de Paris, de intensa e heroica atuação nas barricadas e nas lutas de rua. A biografia dessa mulher quase desconhecida e ao mesmo tempo notável, simpatizante dos Narodniki, militante da seção russa da AIT no exílio (Suíça) e autodenominada marxista, uma das mais caluniadas e odiadas das “incendiárias” parisienses, é a que Herramienta publica por ocasião dos 150 anos da Comuna. Vivemos tempos de confrontos estratégicos acerca da ocupação e disputa de espaços e territórios públicos nas cidades e no campo, pela soberania alimentar, para acabar com o extrativismo. A luta pelo socialismo parece impossível, mas pode tornar-se imprescindível na medida em que se identifica com a luta pela vida e contra o Ecocídio. Então a Comuna de Paris adquire uma nova visibilidade, como uma centelha que pode nos iluminar neste momento de extremo perigo. Suas formas de invenção política e, como um componente vital delas, o papel das mulheres merecem ser revisitadas não como "lições", mas como recursos disponíveis. A Comuna contribui para o reconhecimento da história dos derrotados, para a recuperação de um horizonte emancipatório e, talvez, para a construção de um futuro muito diferente dos rumos da modernização capitalista e também dos modelos do que insisto em chamar "socialismos realmente inexistentes " na União Soviética e na República Popular da China. A bela biografia escrita por Sylvie Braibant, Elisabeth Dmitrieff, Comunera, Aristócrata y Incendiaria, é também uma modesta contribuição para o reconhecimento do que foi e continua sendo a Comuna. ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: Encerro esta intervenção agradecendo a atenção, as saudações recebidas e a pergunta que nos leva a questões muito importantes em relação à Comuna de Paris e à Revolução Russa. Qual é a relação entre o horizonte aberto pela Comuna e a experiência da Revolução Russa? A primeira resposta e mais geral que me ocorre é que a Revolução Russa deve ser considerada como um vasto e complexo processo iniciado em fevereiro de 1917, com a massiva mobilização das tecelãs de Petrogrado que levou à derrubada do czar e à formação dos Soviets, uma verdadeira organização dos operários e camponeses ou, melhor dizendo, dos operários e soldados camponeses, que se espalhou por todo o país ... é uma espécie de Comuna parisiense à escala de um Império inteiro ou de um grande parte do que foi o dito Império ! As discussões e a prática da democracia direta pelos Soviets é uma experiência que continua e em alguns aspectos supera o que foi visto na Comuna. A existência e proliferação de Sovietes nos quais operários, soldados e camponeses se autodeterminavam apesar dos limites impostos pelo Governo Provisório burguês, foi algo enorme entre fevereiro e outubro de 1917 e também nos primeiros meses do poder soviético ... Pelo menos até aquele tremendo discurso de Lênin em que, no final de abril de 1918, redefiniu "as tarefas do poder soviético" no que um de seus melhores biógrafos, Jean-Jacques Marie, considera uma "virada brutal" em sua política interna. Nos meses febris que vão de fevereiro de 1917 a fevereiro-março de 1918, a mobilização, iniciativa e ações práticas de operários, soldados e camponeses levaram à proclamação de um poder soviético que imediatamente se chocou com uma crise de magnitudes insuspeitadas e na terrível derrota que significou o "Tratado infame” que a Alemanha e a Áustria lhe impuseram em Brest-Litovsk ... O que não diminui aquela imensa, colossal experiência durante a qual bolcheviques, socialdemocratas internacionalistas, socialistas revolucionários de esquerda, maximalistas, anarquistas e setores do Bund animaram um espécie de "assembleia permanente" de milhões e milhões de camaradas no âmbito comum e ao mesmo tempo diverso dos Soviets. Os bolcheviques, e em particular o jacobino Lenin, tinham a capacidade de modificar posições anteriores de acordo com o que realmente estava acontecendo. O partido de Lenin não gostava muito dos Soviets mas foi Lenin, quando conseguiu chegar a Petrogrado em abril de 1917, que disse: "Nenhuma confiança ou apoio ao governo provisório burguês" e "Todo o poder aos soviéticos". Inicialmente era minoria mas conquistou o apoio da maioria da organização e com essa orientação aquele partido de alguns milhares de militantes espalhados pela vasta Rússia e totalmente desorganizado pela repressão tornou-se um grande partido de massas com centenas de milhares de trabalhadores, essencialmente trabalhadores, porque a classe média e a intelectualidade estavam migrando para a direita ... O partido bolchevique de 1917, não o de antes, nem o posterior convertido em partido no poder, deu um magnífico exemplo de organização política onde trabalhadores e soldados discutiam tanto ou mais do que os membros do Comitê Central. E, se não eram convencidos do que o CC indicava, faziam o que queriam. Por outro lado, Lenin prestou muita atenção à Comuna e ao que Marx e Engels escreveram sobre ela. Mas sua leitura é discutível. Em O Estado e a Revolução, ele argumenta que o desenvolvimento da revolução exigirá a destruição do Estado burguês e diz com Engels que ele deve ser substituído por um "Estado-não-Estado", um Estado que começará a desaparecer a partir do momento em que é estabelecido. E já em abril de 1917 ele havia propalado as vantagens de um "Estado do tipo Comuna" que os Soviets em grande parte antecipavam. Deve-se notar no entanto que, quando Marx fala da Comuna, ele não diz que é uma nova forma de Estado, ele fala antes de um "governo dos trabalhadores", isto é, Marx não acreditava que fosse possível prescindir de algum tipo de instituição governamental mas não afirma que deveria ser do tipo estatal … Parece-me que os bolcheviques fazem uma crítica tática à Comuna, um aspecto importante, mas é apenas um aspecto de uma experiência tão colossal: a crítica é que eles vacilaram no momento decisivo em que tiveram que ir para uma luta frontal contra o Exército, permitindo que este se reorganizasse em Versalhes e afogasse a Comuna em sangue. Determinados a que o mesmo não ocorresse com eles, apostaram tudo na sobrevivência de seu governo. Quer seja verdade ou não que Lênin sapateou quando, contra todas as probabilidades, duraram um dia a mais que a Comuna, é verdade que ele considerava que nada era mais importante para a revolução na Rússia e na Europa do que a sobrevivência da posição conquistada ... Acho que esse esforço os fez perder de vista ou relegar a segundo plano a mais importante contribuição estratégica legada pela Comuna, que foi e é o caráter fundador da autoatividade e da auto-organização dos trabalhadores. Sem essa bússola, a Revolução Russa percorreu caminhos cada vez mais acidentados, os Soviets perderam representatividade e vitalidade e chegou-se à trágica contradição na qual, ao mesmo tempo que triunfaram militarmente na guerra civil internacional que lhes era imposta ficaram isolados, politicamente e socialmente fragilizados. Aterrorizado por esta "crise geral da Revolução", o Partido Comunista cometeu o crime político que foi a repressão à Comuna de Kronstadt. É por isso que me associo à homenagem que Néstor López propôs aos communards [comuneiros] massacrados em Paris e aos communards [comuneiros] esmagados em Kronstadt. Mas, ao contrário de outros críticos, considero essencial considerar tudo isso no contexto e em relação ao desempenho de todas as forças políticas em circunstâncias nacionais e internacionais complexas e mutáveis. E creio que na base dos erros cometidos estava a incompreensão do protagonismo do campesinato que, ao tomar as propriedades dos latifundiários, revitalizou a obschina... Mas os bolcheviques ignoraram tudo isso e acabaram adotando uma postura política nefasta em relação ao campo e romperam o governo de aliança e coalizão que haviam formado com o partido dos Socialistas Revolucionários de Esquerda. A responsabilidade por esta derrocada repousa acima de tudo nos líderes comunistas mas também na imaturidade dos SR de esquerda, anarquistas e outras organizações que, é preciso que se diga como as coisas eram, compartilhavam tradições e práticas de lutas violentas de facções e quando não podiam resolveram suas diferenças políticas argumentando tentavam fazê-lo com golpes de força ou lançando bombas, o que claramente não é o caminho ... E aqui paro, me desculpando pela extensão e paixão da resposta.
*Aldo Casas é veterano militante marxista argentino, membro fundador do conselho editorial da revista Herramienta, autor de Marx, nuestro compañero e Desafios da Transição: socialismo desde abaixo e poder popular (edição brasileira lançada por “Para Um Novo Começo”)
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