A GUERRA DA RÚSSIA NA UCRÂNIA PODE TERMINAR COM A CONDIÇÃO PÓS-SOVIÉTICA
- paraumnovocomeco
- 31 de mar. de 2022
- 4 min de leitura
Volodomyr Ischenko*
Publicado em 24/03/22 em lefteast.org, publicado originalmente no The Parliament Magazine
31/03/2022

Enquanto o mundo está entrando em uma grande crise política e econômica como resultado da guerra Rússia-Ucrânia, esta pode pôr fim à crise de longa data da condição pós-soviética. A guerra poderia terminá-la seja desmantelando finalmente o próprio espaço pós-soviético seja, em última análise, determinando os contornos e direções do desenvolvimento em direção a estruturas políticas, econômicas e ideológicas mais estáveis nesta parte tumultuada do mundo.
O que é a condição pós-soviética? A melhor resposta seria que é indefinível para além do prefixo “pós”, como algo que substituiu o socialismo de estado soviético. Mas o que exatamente é o “algo” que o substituiu?
A condição pós-soviética foi uma posição intermediária no caminho para se juntar ao desenvolvimento ocidental dos países do antigo bloco oriental na Europa Central, em uma série de momentos “adiados” de 1989 ? A proliferação e aceleração das revoluções maidan** pós-soviéticas apenas substituíram uma fração da elite por outra, que explorou a legitimidade revolucionária para interesses e agendas bastante distantes das aspirações dos participantes das revoluções e quase não trouxe mudanças revolucionárias. Certamente não – para a Ucrânia, tragicamente – quaisquer perspectivas reais de adesão à UE ou à OTAN.
A condição pós-soviética é tão difícil de definir precisamente porque era uma perpétua crise de representação política que essas revoluções apenas reproduziram e intensificaram. As elites pós-soviéticas, que acumularam suas fortunas no processo de privatização rápida e arbitrária da propriedade estatal na década de 1990 – ações que careciam de qualquer justificativa ideológica, religiosa ou tradicional amplamente aceitável – lutaram para garantir uma legitimidade mais ampla de seu governo. Líderes autoritários como Putin chegaram ao poder cumprindo uma função importante para essa elite. Eles garantiram seus ativos e oportunidades de busca de renda, interromperam os processos centrífugos autodestrutivos por meio da coerção de algumas frações da elite e equilibraram os interesses de outras, e forneceram alguma legitimidade popular ao restaurar a estabilidade em meio ao colapso pós-soviético caótico.
A fonte dessa legitimidade foi deter a queda para o desastre, não qualquer tipo de projeto de desenvolvimento para conduzir à saída da enorme zona cinzenta de estagnação e degradação após o colapso soviético. Em vez de resolver isto só fez manter a crise pós-soviética.
Os regimes autoritários aparentemente “consolidados” na Bielorrússia e no Cazaquistão provavelmente não teriam sido capazes de sobreviver aos recentes protestos massivos sem a ajuda da Rússia. A invasão da Ucrânia pela Rússia é, em última análise, uma forma de compensar com violência brutal o fato de que as elites governantes pós-soviéticas não adquiriram nenhum poder de atração. Em vez disso, uma fração dessa elite (consolidada em torno de Putin) adquiriu fortes aspirações de Grande Potência.
Ao mesmo tempo, os inúmeros problemas que o exército russo encontrou nas primeiras semanas da guerra revelam a fraqueza da “modernização autoritária”. As consequências econômicas da guerra para a Rússia minam a própria fonte da legitimidade de Putin: sua promessa de evitar que o país caia em um desastre.
Qualquer resultado da guerra levará a transformações econômicas, políticas e ideológicas fundamentais no espaço pós-soviético. Já podemos observar como algumas das narrativas sobre o povo eslavo “irmão” ou relacionadas à vitória na Segunda Guerra Mundial - que sobreviveram ao colapso soviético por mais de 30 anos e tinham um amplo apelo na Ucrânia mesmo com as “ políticas de descomunização” pós-Euromaidan - estão agora enfraquecendo.
Caso a resistência militar na Ucrânia e as sanções incapacitantes levem à derrota da Rússia, isso significaria a dissolução final do espaço pós-soviético. A humilhação da derrota na Ucrânia aceleraria o colapso do regime de Putin. Seja por meio da revolução maidan conclusiva na Rússia ou, mais provavelmente, por um golpe palaciano de uma fração das elites russas que provavelmente seria acompanhado de violência significativa. O resultado seria, no fim das contas, o fracasso de um centro soberano de acumulação de capital no espaço pós-soviético. As elites na Rússia enfraquecida e em outros Estados pós-soviéticos se reorientariam para o oeste ou para a China e seriam forçadas a abandonar suas vantagens competitivas nas preferências seletivas do Estado (também conhecidas como “corrupção”).
A remoção de um pólo soberano no espaço pós-soviético reorganizaria completamente a política regional, juntamente com a estrutura de alianças políticas nas respectivas Grandes Potências. Enquanto os EUA, a UE e a China também estariam se reideologizando à medida que a Nova Guerra Fria entre eles se desenvolve, as respostas contra-hegemônicas das sociedades pós-soviéticas a seus novos hegemônicos podem não ser necessariamente progressivas. Quanto mais a guerra continuar, e quanto mais baixas e destruição na Ucrânia a invasão da Rússia for capaz de infligir, maior a chance de que o Estado ucraniano e as instituições militares sejam enfraquecidas, o que então fortalece o apelo das forças radicais - semelhante ao que aconteceu recentemente no Oriente Médio.
Caso a Rússia encontre uma maneira de resistir ao golpe econômico da intensificação das sanções e da desestabilização política interna, não poderá contar com medidas ditatoriais crescentes e pura repressão por muito tempo. O Estado russo precisaria comprar a lealdade dos russos e nações subjugadas por políticas econômicas menos conservadoras fiscalmente e mais keynesianas.
A elite dominante precisaria explicar à sociedade por que tantos soldados russos morreram, por que mataram tantos de seus “irmãos” ucranianos, por que o povo vem sofrendo sanções. Em vez da retórica vazia da “desnazificação”, que tem sido claramente insuficiente para inspirar entusiasmo pela guerra na sociedade russa, isso exigiria um projeto imperialista-conservador mais coerente conectando os interesses das elites russas aos interesses das classes e nações subalternas. Também exigiria instituições políticas mais fortes para mobilizar o consentimento ativo para o projeto hegemônico das elites russas – um partido no poder com uma adesão massiva, um movimento pró-governamental popular ou seus equivalentes na era digital.
Ao mesmo tempo, a lacuna inevitável entre as reivindicações hegemônicas da elite e as políticas reais abriria uma oportunidade para um projeto contra-hegemônico mais potente que abordasse essa disparidade. É possível que mais uma vez o elo mais fraco da cadeia imperialista possa oferecer ao mundo um novo modelo: uma revolução socialmente transformadora para o século XXI.
*Volodomyr Ischenko é pesquisador associado do Instituto de Estudos do Leste Europeu da Freie Universität Berlin
** Refere-se à praça Maidan, em Kiev, local dos maiores protestos que em 2014 levaram à derrubada do governo ucraniano pró-Rússia e a subida de governos pró-Ocidente.
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