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AMÉRICA LATINA NA ENCRUZILHADA: PANDEMIA, REBELIÕES E ESTADOS DE EXCEÇÃO

  • paraumnovocomeco
  • 6 de abr. de 2021
  • 20 min de leitura

14/04/2020



O que está acontecendo hoje em nossa América? O que aconteceu com o novo ciclo de lutas na região? Nos perguntarmos sobre os possíveis rumos que nossos povos e sociedades tomarão são preocupações deste dossiê. Uma preocupação ativa, interessada em contribuir para a compreensão dos militantes. Colocar em contato, através deste dossiê, as práticas e perspectivas de muitxs companheirxs de diferentes áreas da nossa região, intelectuais/militantes, que intervêm, contribuem, mas com a mesma pergunta, para onde estamos indo? Para onde queremos ir? Traduzimos e compartilhamos esse instigante artigo de um dossiê maior trazido pela página ContrahegemoniaWeb. Vamos ler.. refletir... debater e buscar pontos de apoio para nossa intervenção?



AMÉRICA LATINA NA ENCRUZILHADA: PANDEMIA, REBELIÕES E ESTADOS DE EXCEÇÃO 13 de abril de 2020 - Coletivo de Comunicação - ContrahegemoniaWeb


O que está acontecendo hoje em nossa América? O que aconteceu com o novo ciclo de lutas na região? Até o surgimento da pandemia que abala a humanidade, a América Latina destacou a irrupção dos povos que - com diferentes modalidades e protagonistas - enfrentaram tantos anos de opressão e exploração. A famosa “gota que transbordou o copo” variou de um aumento nas tarifas (metrô), como no Chile, ao da gasolina, como no Equador. Mas, como dizem os irmãos chilenos, não são 30 pesos, mas 30 anos. Ou 500 anos, quando nossos povos nativos denunciam das entranhas da terra. Nesse contexto, a pandemia permitiu que as classes dominantes colocassem um freio nas mobilizações de rua, mas não resolveu nenhum dos conflitos e contradições existentes. Pelo contrário, os ampliou e os realçou. Nos perguntar sobre as possíveis direções que nossos povos e sociedades tomarão são preocupações deste dossiê. Uma preocupação ativa, interessada em contribuir para a compreensão dos militantes. Colocar em contato, através deste dossiê, as práticas e perspectivas de muitxs companheirxs de diferentes áreas da nossa região, intelectuais/militantes, que intervêm, contribuem, mas com a mesma pergunta, para onde estamos indo? Para onde queremos ir? Nós fornecemos, nesta introdução, nosso olhar.


ESTADOS UNIDOS REDOBRAM SUA OFENSIVA CONTRA A AMÉRICA LATINA Lutas populares não são a única coisa que se agudiza na América Latina. Nossa região está passando por uma ofensiva americana para aprofundar seu controle, enfraquecido [antes] por vários motivos, entre outros: por sua intervenção após o ataque às torres gêmeas para controlar o Oriente Médio, redobrada após a "Primavera Árabe"; por lutas populares que colocam a hegemonia neoliberal em crise em vários países; e, em nosso continente, o surgimento de governos que, embora todos taxados como pós-neoliberais, tinham grande diversidade. Alguns desses governos expressaram maior radicalismo e características anticapitalistas, como a Venezuela; outros, uma variável diferenciada de neodesenvolvimentismo. Mas tudo de alguma forma limitou e corroeu a capacidade de controle do Império. E isto, sem esquecer de que grande parte dos países da região permaneceram tiveram uma sucessão inacabada de governos neoliberais, como é evidente no caso do Chile, Colômbia, Peru, ou grande parte da América Central, para nomear alguns casos. Poderíamos colocar o demonstração frontal da ofensiva americana a partir da reativação da Quarta Frota e do golpe contra Zelaya em Honduras (2009), a destituição de Lugo (2012) e o início dos chamados "golpes leves", cujo corolário foi a destituição de Dilma Rousseff no Brasil (2015) e a prisão de Lula da Silva que preparou o caminho para Jair Bolsonaro e o partido militar subirem ao poder. Em outras palavras, golpes que contam com a colaboração do judiciário, parlamentos, oligopólios de comunicação, etc. para deslocar governos considerados problemáticos - apesar do escasso radicalismo - pelo poder econômico e pelos Estados Unidos. Ao mesmo tempo, desde a tentativa frustrada de atingir Hugo Chávez em 2002, passando pela greve do petróleo, as sucessivas guarimbas, as ações dos paramilitares colombianos e ameaças de ataque à fronteira, até o atual bloqueio econômico criminoso com o cerco naval no Caribe, a Venezuela sofreu continuamente todas as receitas dos manuais de contrainsurgência e guerras de baixa intensidade projetadas pelos EUA com a cumplicidade dos países centrais. Neste cenário de radicalização das direitas e do Império, merece um capítulo à parte o golpe perpétuo contra o governo indígena-camponês de Evo Morales por uma direita racista e neofascista local, a comunidade empresarial, a justiça e a mídia, com o apoio da embaixada dos EUA e de organizações neocoloniais como a OEA, dirigida por Luis Almagro. Vale ressaltar, em particular, que Almagro chegou a esse cargo a partir das fileiras da Frente Ampla do Uruguai, o que nos mostra o grau de decomposição de importantes margens do centro-esquerda nesses processos. Sem dúvida, isso nos permite ver as diferentes modalidades com as quais os Estados Unidos - de acordo com a relação de forças em cada um desses países e às formas particulares de cada Estado e sua classe dominante - organizam sua contraofensiva contra qualquer tentativa soberana em Nossa América. Esse aspecto está articulado com o surgimento de uma série de governos de direita promovidos pelo voto da maioria. Essa tendência começa com a vitória eleitoral de Mauricio Macri na Argentina (2015) e continua com a vitória de Sebastián Piñera no Chile (2017), a de Iván Duque e o uribismo na Colômbia (2018), a da extrema-direita Jair Bolsonaro no Brasil e a de Luis Alberto Lacalle, no Uruguai (2019), evidenciando uma ofensiva muito clara da direita no continente. Podemos acrescentar o caso sintomático do Equador, onde o escolhido por Rafael Correa para continuar o processo da chamada "Revolução Cidadã" em 2017, Lenin Moreno (primeiro como vice-presidente no período 2007-2013 e depois como a mais alta autoridade executiva), deu uma virada muito acentuada e cada vez mais brutal para a direita, avançando contra conquistas dxs trabalhadorxs e do povo equatorianos e alinhando-se ao bloco antichavista da região. Essas novas direitas latinoamericanas têm certas características inovadoras ou minimamente atualizadas: incorporam trabalho sistemático com as "fake news", o controle das redes sociais como parte de sua construção de mídia e a moldagem de uma subjetividade reacionária, com particular - mas não única – incidência nas classes médias urbanas; Elxs travam as lutas contra as esquerdas e os movimentos populares, expressando em muitos casos uma reação virulenta contra o feminismo e o empoderamento das mulheres, contra a dissidência sexual, as classes populares e o que seja comunitário. Em nome do combate ao terrorismo, corrupção, tráfico de drogas ou insegurança, eles exibem uma reação brutal. Portanto, não se trata de pensar no fascismo à moda antiga, como uma reação e radicalização do direito contra a força do movimento trabalhista ou a ascensão e ascensão do comunismo. Essa reação fundamentalista tem sua base determinante na oposição virulenta às mudanças sociais e culturais que vêm ocorrendo com grande força na última década na América Latina e no mundo. Em nossa opinião, é pertinente falar de neofascismos que se sobrepõem e se imbricam às lógicas neoliberais de dominação e suas receitas econômicas e sociais, como já aconteceu com o Pinochetismo no Chile em 1973. Acompanhando esse crescimento da direita, vem ocorrendo o reaparecimento do chamado Partido Militar, um novo papel para as Forças Armadas em grande parte da região e que a pandemia de coronavírus vem fortalecendo a passos acelerados, mas cuja gênese é anterior. De fato, os casos de repressão colombiana e de Piñera no Chile a protestos sociais - com os militares nas ruas - precedem a atual crise. Há cada vez menos países com plena validade de certos direitos liberais, de expressão, movimento - exceto mercadorias e capital -, opinião, entre outros. Aqui surge uma tendência reforçada ao controle social, militarização e repressão, de modo que é possível ver, da mão dessas direitas, outro elemento-chave: a degradação das liberdades - sempre relativas - dos Estados liberais, que se orientam em direção à firme tendência de que os estados de excessão sejam cada vez menos excepcionais.


CHINA E EUA NA DISPUTA POR HEGEMONIA GLOBAL Outro aspecto que explica em parte a contraofensiva dos EUA é o forte confronto com a China. Apenas pense que em 2000 a China recebeu 1% das exportações latinoamericanas e exportou pouco menos de 2% para o nosso subcontinente. Por outro lado, em 2018 as exportações latinoamericanas para o país oriental já excederam confortavelmente 12%, enquanto as importações se aproximaram de 20%. Obviamente, isso marca uma mudança em nível global e o peso do investimento e do poder de compra chinês no cenário regional. Assim, a contraofensiva dos EUA faz parte da disputa pelo domínio em um mundo onde a anunciada hiperhegemonia norte-americana, após a queda da URSS, o Muro de Berlim e sua intervenção militar no Oriente Médio, parece questionada pela aliança China–Rússia. Nesse cenário multilateral, é imperativo que os Estados Unidos recuperem fortemente o controle total da América Latina, interrompam a expansão chinesa e aniquilem as experiências que mais questionaram a hegemonia americana, como Venezuela e Cuba. As explicações conspiratórias encontradas sobre o surgimento do coronavírus - o "vírus chinês" de acordo com Trump, uma arma biológica dos EUA de acordo com Xi Jinping - são uma das áreas em que a disputa é expressa, o que também se sustenta na política interna desses países. Como esperado, nenhum dos candidatos afirma que é o capitalismo - com sua destruição ambiental e seus sistemas de produção de alimentos que apenas geram fome e doenças - a principal causa dessa e de outras pandemias, como já foi apontado em vários artigos aqui publicados.


ELIMINAÇÃO DOS BENS COMUNS E CRISE CIVILIZATÓRIA Outro elemento chave na análise do estágio é a exacerbação da acumulação por despossessão que, como David Harvey apontou, torna-se uma constante necessidade do capitalismo. Desde 2008, testemunhamos uma crise aguda no sistema capitalista. Como já anunciado antes da pandemia, era esperada uma nova e mais aguda crise, quando ainda não havia sido alcançada uma recuperação completa daquele ano. Obviamente, os efeitos da pandemia e o número brutal de aumentos diários no desemprego, a queda na produção e o aprofundamento da recessão estão anunciando que provavelmente estamos à beira de uma crise de dimensões próxima à da década de 1930, com características devastadoras em todo o mundo capitalista. Uma crise em todas as ordens - social, política, ambiental, cultural, cuidados -, que assume contornos nítidos de crise civilizatória e que põe em evidência novamente que o capitalismo já não pode garantir sequer a vida. A necessidade do capital de aprofundar o extrativismo e controlar o lítio boliviano, o petróleo e o gás de Vaca Muerta ou da Venezuela, a biodiversidade amazônica no Brasil, a água do Chile ou o aqüífero guarani, para citar alguns dos ativos comuns de nossos região, já estava presente, mas antes da crise ela se torna ainda mais feroz. As lutas socioambientais em defesa do território, de nossos bens comuns, tornam-se cada vez mais importantes, com um forte papel para os povos indígenas e as populações rurais, às quais se juntam cada vez mais setores populares prejudicados pela destruição ambiental, o desmatamento, a fumigação ou perda de acesso a um elemento vital como a água. Diante disso, os governos que se assumem como "progressistas" - como é o caso da Argentina - o fazem em um contexto profundamente diferente do início do século XXI. Estamos testemunhando uma queda acentuada nos preços de matérias-primas e alimentos em uma região cada vez mais primarizada, que é alimentada por um ciclo capitalista de depressão aguda e crise global como a que estamos enfrentando e que é exacerbado pela pandemia. Portanto, as receitas neodesenvolvimentistas, distribuicionistas, que propõem um retorno impossível ao keynesianismo do período pós-2ª Guerra sem afetar as principais fontes do sistema capitalista, terão sérias dificuldades em conciliar certo crescimento econômico com a implantação de mecanismos de consenso na população. Essa é uma tendência de médio prazo que não deve ser ignorada, como se sucede no caso argentino, devido à existência de uma lua de mel para grande parte da sociedade com esse governo, onde a comparação com a brutalidade predatória do macrismo aumenta sua capacidade de governabilidade. Juntamente com a queda nos preços dos produtos exportáveis, o calcanhar de Aquiles da governabilidade passa pelo endividamento fenomenal da região, outra tendência importante que se multiplicou na última década. De fato, em nosso país, o governo Macri em quatro anos assumiu uma dívida gigantesca, ainda maior do que a contraída durante o menemismo e a última ditadura militar (que, juntamente com a do Brasil, foram o início do endividamento como uma nova forma de dependência). Esses elementos marcam que os novos “progressismos” têm um cenário muito mais complexo e difícil. As conseqüências socioeconômicas da pandemia aumentarão ainda mais essas dificuldades.


AMÉRICA LATINA ANTES DA PANDEMIA Um aspecto decisivo que estava em pleno andamento quando o impacto do vírus Corona Covid-19 interrompeu seu avanço foi o surgimento de lutas populares no mundo e, em particular, em nosso subcontinente. Não nos deteremos em sua análise exaustiva; os artigos deste dossiê o farão fornecendo muito mais elementos. Em resumo, podemos dizer que é um arco de conflitos interconectados e que têm início no Caribe e na América Central, como evidenciado pelas enormes e pouco conhecidas - pelo menos na América do Sul - rebeliões haitianas ou hondurenhas. Esse ciclo tem um forte impacto no Equador, cuja rebelião teve seu epicentro no setor mais dinâmico do movimento popular naquele país: A coordenação indígena CONAI. Esse protagonismo e liderança ocorre em uma estrutura mais ampla de rebelião popular contra o ajuste de Lenin Moreno. Mas a grande novidade deste novo ciclo de protestos irrompe no ventre do chamado "melhor aluno" do neoliberalismo na região: o Chile. Um país em que a ditadura do general Augusto Pinochet construiu os fundamentos do modelo socioeconômico que os sucessivos governos da Concertación sustentaram em tempos de democracia. Ainda resta ver como o protesto social evolui após a pandemia, mas o estado neoliberal sofreu, sem dúvida, um grande golpe. Foi isso que explodiu e conseguiu derrotar o medo que a ditadura e as democracias do capital instalaram na população. Encontramos nessas lutas antecedentes mais próximos, como a luta contra um sistema educacional perverso, as enormes mobilizações contra aposentadorias privadas, a luta histórica do povo Mapuche, com recuperações de território e ações diretas contra grandes empresas extrativas, apesar da aplicação da lei antiterrorista – elaborada por Pinochet - por parte dos governos civis "socialistas" de Ricardo Lagos e Michelle Bachelet. A esses antecedentes são adicionados novos dados fundamentais: a chamada primeira linha, isso mostra a necessidade e legitimidade da violência e da autodefesa popular. Esse é um elemento chave, uma vez que recuperar a convicção da legitimidade da violência popular em face de ferozes repressões, como a que vimos no Chile, é uma das questões que teremos que discutir nos próximos anos. Por fim, esse ciclo chega à Colômbia, onde a legitimidade do uribismo, que era muito alta, principalmente nas grandes cidades, começa a se deteriorar diante da desenvolvimento de mobilizações. Conduzindo todo esse ciclo de rebeliões e como uma onda arrebatadora em nosso subcontinente, o movimento feminista remove as velhas estruturas patriarcais. Sentimos parte desse feminismo interseccional, de mulheres, lésbicas, travestis, trans, bissexuais e não-binários, plurinacional e anticapitalista, que luta contra patriarcados racistas, heteronormativos e cisexistas, partidários de políticas extrativistas e coloniais. A pandemia cria novos desafios para os movimentos feministas e de diversidade. Em um contexto em que a grande maioria dos casos de violência masculina ocorre em residências, o isolamento social obrigatório deixou as mulheres e pessoas não-heteronormativas, trancadas com seus agressores. Por outro lado, diferentes grupos fundamentalistas e alguns governos aproveitaram a emergência de saúde para negar o acesso de mulheres, meninas, adolescentes e pessoas trans a serviços de aborto. Em particular, na Argentina houve 34 feminicídios no decorrer de março, com um aumento de 39% na demanda da linha de atendimento 144 durante o confinamento. Dados os perigos óbvios da "#FicaEmCasa" para esses setores da população, é estranho que o Ministério da Mulher, Gênero e Diversidade não esteja incluído no comitê de emergência organizado pelo governo. É evidente que, no prolongamento do confinamento obrigatório, é vital promover uma #QuarentenaLivredeViolência como várias organizações feministas vem defendendo. Isso implica uma série de medidas, como a inclusão de novos espaços para expandir a rede nacional de abrigos e casas, campanhas massivas de divulgação contra a violência de gênero e a defesa do aborto e da contracepção como benefícios essenciais à saúde em tempos de pandemia. Em resumo, a conformidade com o Pacote Mínimo de Serviços Iniciais para Saúde Reprodutiva, um padrão internacional de atendimento que deve ser implementado em cada emergência, deve ser garantida.


O CASO ARGENTINO Paradoxalmente, no momento do surgimento dessas lutas na América Latina, um país que é uma referência histórica no nível de conflitos sociais como a Argentina, não fez parte desse ciclo de rebeliões com características insurrecionais, como as vistas em todos esses exemplos que acabamos de mencionar. Aqui está uma discussão que se abre. Em nosso entendimento, não é apenas um copo meio cheio ou meio vazio. O que pretendemos dizer? Em 2017, a grande luta contra a reforma previdenciária envolveu uma mobilização importante, massiva e com predisposição a resistir por várias horas a uma forte repressão. Ao mesmo tempo, houve um certo grau de confronto com as forças policiais, sem que houvesse repúdio pelo resto da mobilização dos setores que enfrentavam a polícia. O macrismo triunfou, mas foi um triunfo pírrico. Ele conseguiu, mas ficou claro que não estava em posição de avançar no aprofundamento neoliberal. Ele conseguiu aprovar a reforma previdenciária, mas mostrou que não tinha condições de avançar na reforma trabalhista. A constatação de sua fraqueza causou uma taxa de câmbio motorizada por parte do stablishment, o que acelerou a deterioração econômica. Sem os efeitos da luta de classes, provavelmente não teria havido uma corrida cambial. Tendo perdido a confiança de um setor da classe dominante, o governo macrista tendia a se apoiar no FMI e em seus empréstimos, o que aprofundou ainda mais a crise. Em um cenário de crise e grandes mobilizações, a maioria do Partido Justicialista fragmentado, a liderança sindical, a Igreja Católica e os setores empresariais começaram a preparar e criar as condições para a mudança eleitoral em 2019. A unidade do peronismo com o kirchnerismo - sem que este último fosse o eixo dessa aliança que acabou substituindo o macrismo do governo - construiu uma alternativa que grande parte da sociedade considerou viável. Nestes dois anos, o eixo era fundamentalmente eleitoral e houve uma diminuição das lutas populares, onde seus últimos grandes protestos foram o conflito universitário e os protestos maciços pela promulgação da Lei de Aborto Legal, Seguro e Gratuito durante 2018. No momento, ainda estamos passando pelo período de lua de mel de grande parte da sociedade com o governo, e a aceitação social de Alberto Fernández está crescendo ainda mais em pesquisas no contexto da pandemia. Por um lado, capitaliza o sucesso de ter levado em conta o exemplo negativo de países como Itália e Espanha e de continuar em quarentena sem esperar pela multiplicação de infecções. Por outro lado, [o fato de] promover medidas para congelar o aumento de aluguéis e hipotecas, bem como a suspensão de cortes em serviços essenciais, o legitima na imaginação social, ainda mais se você pensar - como grande parte da população - no que teria acontecido nessa crise com um novo mandato do governo Macri, caracterizado por um corte brutal no investimento em saúde, ciência e tecnologia. No entanto, existem situações que podem corroer essa credibilidade. Primeiro, a militarização dos territórios e as terríveis consequências sociais de dar carta branca às forças repressivas para impor a quarentena estão levando a isso, como destacam os relatórios do CORREPI (corregedoria). Em segundo lugar, a proibição de demissões ocorreu tardiamente e é permanentemente violada pelos empregadores, enquanto o aumento do seguro-desemprego é acompanhado por subsídios maciços ao grande capital, bem como a modalidade de suspensões de trabalho com reduções salariais. Terceiro, brilha por sua ausência a aplicação da lei de suprimentos com controle real de preços, que tiveram aumento virulento nesses dias, assim como não há vontade de intervir em empresas que praticam desabastecimento e especulam sobre a falta de bens essenciais. Quarto, em meio à crise, foi feito um pagamento de US $ 250 milhões em juros sobre a dívida externa e um possível novo pagamento de US $ 500 milhões foi anunciado. Isso acontece em momentos de desespero devido à falta de suprimentos de saúde e quando se torna mais necessário do que nunca declarar inadimplência [da Dívida Externa], um cenário que não pode ser descartado em nenhum caso com o aprofundamento da crise. Em quinto lugar, erros garrafais, como convocar aposentados, pensionistas e beneficiários da AUH a receber em bancos sem calendário prévio, causando filas gigantescas em meio a uma pandemia ou a compra de alimentos para restaurantes públicos pelo Estado a preços mais altos do que aqueles de supermercados, mostram problemas estruturais do governo. Finalmente, um panorama preocupante é a pressão dos grandes grupos econômicos para encerrar a quarentena, pelo menos seletivamente, o que colocaria em risco a vida de milhares de trabalhadores e desperdiçaria o enorme esforço social realizado até agora, em um contexto em que vários profissionais de saúde afirmam que o auge da epidemia ainda está por vir. Essas críticas fundamentadas não devem nos fazer perder de vista o apoio social que o governo construiu até agora. A grande questão é quais linhas de ação e estratégias devem ser traçadas pelas forças consideradas revolucionárias.


NOTAS PARA UMA ESTRATÉGIA Nesse sentido, já podemos destacar algumas lições políticas desse contexto e período que acreditamos ser necessário coletar. Uma primeira questão é que cada vez é mais difícil para os vários setores das classes dominantes construir sua hegemonia, apresentar suas perspectivas e projetos como benéficos para a sociedade como um todo. A direita neoliberal só pode oferecer mais do mesmo, aprofundando ajustes, abertura econômica, individualismo e meritocracia. Esses discursos sofreram um duro golpe durante esta pandemia, tornando muito difícil, por exemplo, continuar justificando deixar os sistemas públicos de saúde ao mercado e à rentabilidade [financeira]. Na opção oferecida por Donald Trump, trata-se de reconfigurar o neoliberalismo e proteger os Estados Unidos de mudanças na ordem mundial, com doses extremamente altas de misoginia, racismo, repressão, controle social, além de medidas que implicam uma maior incidência econômica do Estado para repatriar o capitais de multinacionais e reativar o ciclo econômico interno sem modificar a lógica da exclusão aguda, falta de proteção social, insegurança no emprego ou redução dos salários reais. Com respostas variáveis, o direito neoliberal latinoamericano continua a se apegar ao programa neoliberal clássico, exigido pelos Estados Unidos diretamente ou através de organizações internacionais como o FMI ou o Banco Mundial: mais ajustes, abertura, trabalho, previdência social, reformas tributárias e educacionais. Trump e o establishment dos EUA não prescrevem ou admitem para nossa região as medidas que podem ser aplicadas no território americano, muito pelo contrário. A pandemia acentua a dificuldade hegemônica do direito de construir estabilidade e consenso majoritário. O ciclo de lutas que descrevemos anteriormente é uma demonstração disso. Nas classes dominantes, vai ganhando consenso em aceitar alguma intervenção e fortalecimento do Estado para consertar o que os principais grupos econômicos não podem e não querem remediar. A partir disso, alguns se iludem com o retorno a um impossível "estado de bem-estar", ou "estado materno", como alguns reformulam. Nesse contexto, é essencial questionar o pensamento de que o Estado argentino, nascido do genocídio dos povos originários, sustentado nos milhares de desaparecidos durante a última ditadura militar, construído sobre uma dívida que vincula os laços de nossa dependência, capturado em boa parte de seus laços estruturais com o poder econômico, seja a ferramenta adequada para libertar e entregar ao povo os imensos recursos de que precisamos. Apontar essas questões não significa cair em posições que negam a necessidade da disputa de instâncias estatais e construir um estado com características populares genuínas. O problema é construir um Estado permeado pela sociedade civil, ao mesmo tempo evitando a subordinação dos movimentos sociais ao Estado. O exemplo paradigmático foi o caso venezuelano: sem o estado chavista, as condições para o surgimento de espaços comuns dificilmente teriam sido geradas. No entanto, estrategicamente, as comunas precisam, como instâncias de autoemancipação, evitar serem submetidas à estrutura do estado venezuelano. Em nossa opinião – mesmo que o cenário pós-pandemia ainda esteja por ser visto - os efeitos da expansão do coronavírus agravarão as dificuldades hegemônicas das classes dominantes, eles não os resolverão. Acreditamos que mais possibilidades podem ser abertas para conduzir em um sentido de ruptura, se pudermos, como povo, assumir nosso papel de liderança e rejeitar receitas conhecidas que, na melhor das hipóteses e cada vez menos, apenas prologam a agonia.

Um segundo ensinamento é que toda vez que são feitas concessões à nova direita - como evidenciado pelo processo de ascensão de Bolsonaro ao governo no Brasil ou ao golpe na Bolívia - por uma questão de “governabilidade” e “razoabilidade”, o resultado final é um enfraquecimento acelerado dos governos progressistas, sua queda e um empoderamento das direitas às quais se tentou frear à força de pactos. Este é um fato que não podemos ignorar nesta fase: concessões políticas não podem ser feitas ao neofascismo e à nova direita. E muito menos assumir diante delas e por si mesmos a defesa de uma "ordem" e uma "normalidade" que cansa e oprime os povos. Paradoxalmente, parte da força dos neofascismos tem sido sua capacidade de parecer perturbadora e antissistêmica. Menos ainda por uma questão de defender o sistema que as novas direitas neofascistas pretendem enfrentar, pode-se pensar em procurar aliados em frações da classe dominante, quando os sonhos de uma suposta burguesia nacional que acompanharia um processo de redistribuição do mercado interno se mostraram absolutamente inviáveis em um ciclo de capitalismo totalmente globalizado faz tempo.

Em terceiro lugar, é fundamental como dirigimos nosso olhar e as ações para um novo programa no contexto da evolução da pandemia. Um tema decisivo desse programa mínimo é enfatizar fortemente a interrupção dos graus de militarização na América Latina e o forte avanço dos estados de excessão. Militarizar ou se comunicar é um dilema do momento. Apostar no comunitário, na comunidade, para empoderar os movimentos a partir de baixo; explorando a chave do poder popular como estratégia, a chave da auto-organização, de socializar vínculos, de estreitar laços, de reconhecer e compartilhar experiências, para tentar reconstruir uma outra subjetividade. Justamente nos bairros é necessário garantir a capacidade sanitária em saúde com insumos com contribuições de organizações de base. Elas devem ser os que promovem e organizam por debaixo a quarentena, não as forças repressivas que multiplicam os abusos, especialmente em relação aos jovens, como se pode ver todos os dias nos relatórios do Comité de Coordenação contra a repressão policial e Institucional (CORREPI) na Argentina. A partir desta base, precisamos de uma auto-organização, construindo laços comunitários, que não se esgotem em cada território ou em cada local de trabalho, mas que avancem na perspectiva de ir construindo outra institucionalidade própria, no sentido da democracia protagonista real, que supere a "democracia" liberal que apenas possui essa denominação. Em quarto lugar, para os grandes empregadores que procuram "não parar a economia", a única coisa sagrada é o lucro, enquanto os seres humanos e a natureza são objetos descartáveis, que só servimos enquanto persista alguma gota de rentabilidade que possa ser extraída de nós. Se o sistema impõe cada vez mais a liberdade absoluta para a circulação de bens e capitais, enquanto restringe a liberdade das pessoas o máximo possível, os povos precisamos exatamente o contrário. A pandemia exige, dado o forte ajuste que o capital está começando a fazer, leis que proíbam absolutamente demissões e a degradação das condições de trabalho. Para que essas disposições tenham um impacto real, é necessário dar espaço a instâncias de base que controlem o cumprimento dessas medidas. O caso emblemático, mas não único, da Techint, que manteve as demissões de 1.450 trabalhadores, apesar do decreto que os proibia - demissões finalmente aprovadas pela UOCRA e pelo Ministério do Trabalho - apontam para a importância de construir e impor essas instâncias a partir de baixo. Da mesma forma, a pandemia exige que as leis de abastecimento sejam implementadas. A Argentina conta com uma delas desde o terceiro governo peronista, que todos os governos se recusaram a aplicar, mesmo em tempos hiperinflacionários, mas que pode ser um remédio contra a especulação brutal em medicamentos, alimentos e itens de higiene e desinfecção. Como a defesa do emprego, não pode ser garantida sem uma organização popular de baixo, contra a fome e a acumulação. Obviamente, são necessários mais recursos para investir no sistema de saúde, no sistema educacional, na habitação e para aqueles que perderam a possibilidade de autossustentabilidade, para enfrentar de forma contracíclica a brutal crise econômica que a pandemia e a pressão do capital trazem juntas. Diante dessas questões, surge a necessidade de exigir a suspensão total do pagamento da dívida externa e sua investigação e auditoria, declarando nula toda dívida ilegítima e odiosa. Ao mesmo tempo, isso deve ser acompanhado pela nacionalização do sistema financeiro e do controle estatal - com a participação das forças populares - do comércio exterior. É a única maneira de impedir a fuga de moeda estrangeira para os paraísos fiscais, um dos elementos da crise econômica em nossa região. Foi divulgado que 950 argentinos têm contas não declaradas no exterior de US $ 2,6 bilhões. Ao mesmo tempo, a União Industrial Argentina requer pagar apenas 70% dos salários enquanto dure a quarentena. Algumas empresas, como Garbarino, se apressaram a pagar apenas 30% de sexs trabalhadorxs. Pelo contrário, precisamos que os salários sejam mantidos e aumentados, enquanto os proprietários dessas fortunas sejam fortemente tributados, a fim de obter fundos para enfrentar a pandemia e satisfazer as necessidades populares. A única maneira de sair da barbárie que a expansão do capitalismo gera e é evidenciada por uma agricultura envenenada da população, a produção industrializada de animais, a devastação de florestas, a devastação de florestas, as mudanças climáticas e as condições materiais para novos Pandemias com efeitos sociais cada vez mais perniciosos, é um conceito que debata e promova novas formas de comida, novas formas de produção e um novo relacionamento com a natureza. Essa visão de mundo inevitavelmente tem que questionar a sobrevivência do sistema capitalista para ser uma alternativa real ao desastre existente. Em quinto lugar, obviamente, esses passos exigem o acúmulo de uma grande força social que torne isso possível. Nesse sentido, a necessidade de uma disputa por significado, uma disputa pela subjetividade, uma disputa política, social, de baixo para cima, mas também de comunicação, se torna ainda mais urgente. A única maneira de enfrentar, com algum grau de possibilidade real de incidência, os desafios desse cenário, é entender a necessidade de convergências, pensar em projetos de treinamento o mais massivos possível, grandes projetos de comunicação e processos de articulação políticas e sociais de organizações populares e todos os tipos de grupos sociais, trabalhadores, gênero, antidepressivos, educacionais, culturais, produtivos. Os ciclos de luta mostraram que toda uma nova geração está se unindo às rebeliões, onde a radicalização de um setor do movimento feminista e juvenil é um componente decisivo, com a característica fundamental de que uma quantidade enorme desse ativismo não participa de forças políticas anteriores [correntes]. Por muitas razões, desconfiam dos espaços políticos existentes e essa desconfiança - com razões certas e válidas que devem ser valorizadas - atinge a esquerda revolucionária. Portanto, a construção de amplos espaços sociais, articulações abertas dos movimentos populares de assembleias é uma tarefa urgente, paralelamente à necessidade de convergência de organizações político-sociais e revolucionárias que reivindiquem o direito à rebelião como um direito essencial dos “de baixo”.

Imagem: Rodolfo Fucile para a revista Cítrica www.rodolfofucile.com.ar Traduzido de: https://contrahegemoniaweb.com.ar/dossier-america-latina...

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